1) Estamos, ao mesmo tempo, no despertar do século XVII - 1634, o ano do assassinato do padre Grandier, o "herói" do livro de Huxley - e no auge do século XX, 1952, o ano de publicação de Os demônios de Loudun. Huxley jamais perde de vista esse salto temporal, que ele encara não como um obstáculo, mas como um exercício - sempre questionando seu ponto de vista, sempre se perguntando será que não estou vendo o século XVII com as lentes do século XX? ou ainda como posso, ainda que indiretamente e de forma precária, resgatar esse olhar que o século XVII lançava a si próprio? (Lembrando que, para Auerbach, essa capacidade de "trocar as lentes" é o maior legado deixado por Vico).
Em meio à cristandade da época medieval e do início da Idade Moderna, a situação dos feiticeiros e seus clientes era quase que exatamente igual à dos judeus sob o jugo de Hitler, dos capitalistas durante o governo de Stálin, dos comunistas e seus simpatizantes nos Estados Unidos (p. 151). No auge da caça às bruxas no século XVI, a vida social em determinadas regiões da Alemanha deve ter sido muito semelhante àquela sob o domínio nazista ou num país recentemente dominado pelos comunistas (p. 156). Aldous Huxley, Os demônios de Loudun. Trad. Sylvia Taborda. São Paulo: Globo, 2014.
2) Se, como dizia Barthes, a língua é fascista porque obriga a dizer, mais um elo se estabelece a partir desse exercício de Huxley de ligar o século XVII ao XX - a histeria das freiras se contagiou pelo discurso, do exorcista para a prioresa e desta para as outras: "a prioresa recontava essas aventuras noturnas às demais freiras; as histórias nada perdiam na narrativa e, dentro em pouco, duas outras jovens estavam também tendo visões de clérigos importunos e ouvindo uma voz que sussurrava as mais indelicadas propostas em seus ouvidos" (p. 133). Se Didi-Huberman fala de uma "invenção da histeria" - com Charcot estimulando as poses e as palavras das mulheres, investindo tanto na visualidade quanto na textualidade -, no livro de Huxley está em jogo uma "invenção da possessão".
3) O contexto francês e a forte carga sexual em Os demônios de Loudun (imaginária nos delírios das freiras, real na vida de Grandier, padre metido a Don Juan que era) me fizeram pensar em Rabelais e, consequentemente, em Bakhtin. Grandier é rabelaisiano, com seus excessos, sua sensualidade, sua eloquência: "Domingo após domingo", escreve Huxley, Grandier, "no púlpito da igreja de Saint-Pierre", "fazia suas famosas imitações de Jeremias e Ezequiel, de Demóstenes, de Savonarola, mesmo de Rabelais - pois ele era tão bom na zombaria quanto na justa indignação" (p. 26). Uma passagem de Bakhtin evoca essa liberdade de Grandier:
A tradição antiga permitia o riso e as brincadeiras licenciosas no interior da igreja na época da Páscoa. Do alto do púlpito, o padre permitia-se toda espécie de histórias e brincadeiras a fim de obrigar os paroquianos, após um longo jejum e uma longa abstinência, a rir com alegria e esse riso era um renascimento feliz. Essas brincadeiras de tipo carnavalesco referiam-se à vida material e corporal. A tradição do risus paschalis persistia ainda no século XVI, isto é, enquanto vivia Rabelais. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. Hucitec, 2010, p. 68.
A história de Grandier, portanto, é também a história da progressiva dissolução dessa tradição carnavalesca - "as tradições do realismo grotesco se empobrecem e se restringem mais ainda nos diálogos do século XVII", escreve Bakhtin mais adiante (p. 90), e vai piorando, numa "total degenerescência da franqueza da praça pública" (p. 91). O caso Grandier, tão bem esmiuçado por Huxley, com sua morte na fogueira, condensa as múltiplas estratégias postas em movimento para abafar e neutralizar esse modo "carnavalesco" (no sentido dado por Bakhtin) de conceber o mundo e a linguagem.
Recomendável dar uma olhada em "Magistrados e Feiticeiros no século XVII" de Robert Mandrou e no "Les possedés de Loudun" de Michel de Certeau, além do livro de Michel Carmona, para não falar dos escritos de Surin, o exorcista da parada. Grandier, que hoje ainda é nome de rua em Loudun, tem faces menos alegres do que o carnavalesco rabelaisiano.
ResponderExcluirMas, é claro, você está falando do livro de Huxley.
Huxley coloca uma bibliografia no livro, no final - tem Michelet, Surin também. Surin vira protagonista na segunda metade, depois que Grandier é queimado.
ResponderExcluirEu estou lendo e escrevendo sobre Surin, por esses tempos. Ainda me dedico o suficiente para voltar a Loudun. O sujeito é uma baita personagem. Como todo místico que se preze.
ResponderExcluir(olha só. é a primeira vez que nessas conversas nossas sobre a Gália de antanho quem fala do Michelet é só você. e sim, Michelet fala de Loudun em La Sorcière. tinha me esquecido.)