Dürer, As quatro feiticeiras, 1497 |
1) Em suas cartas a Fliess, Freud frequentemente reforça um tema recorrente em sua obra: a ideia de que a psicanálise toca forças arcaicas com um instrumental moderno. Na carta de 17 de janeiro de 1897: "O que diria se eu lhe contasse que toda a minha novíssima pré-história da histeria já era conhecida e foi publicada mais de cem vezes, embora há muitos séculos? Você se lembra de que eu sempre disse que a teoria medieval da possessão, sustentada pelos tribunais eclesiásticos, era idêntica à nossa teoria de um corpo estranho e da divisão da consciência? Mas por que será que o demônio que se apossava das pobrezinhas invariavelmente abusava delas sexualmente, e de maneira repugnante? Por que é que as confissões delas, sob tortura, são tão semelhantes às comunicações feitas por meus pacientes em tratamento psíquico?" (A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904. Edição de Jeffrey Masson, tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Imago, 1986, p. 225).
2) Na carta seguinte, de 24 de janeiro de 1897, Freud escreve: "A ideia de trazer as bruxas à cena está ganhando força. (...) A história do demônio, o vocabulário dos palavrões populares, as cantigas de roda e costumes de infância - tudo isso vai agora adquirindo significado para mim. (...) Estou começando a apreender uma ideia: é como se, nas perversões, das quais a histeria é o negativo, estivéssemos diante de um remanescente de um culto sexual primitivo (...) uma religião demoníaca primitiva, com ritos praticados em segredo, e compreendo a terapia rigorosa aplicada pelos juízes das bruxas. Os elos de ligação são abundantes. Outro afluente dessa corrente de ideias provém da consideração de que existe uma classe de pessoas que, até os dias de hoje, conta histórias como as das bruxas e as de meus pacientes; ninguém lhes dá crédito, mas a confiança que essas pessoas tem em suas histórias é inabalável. Como você deve ter adivinhado, refiro-me aos paranoicos" (p. 228).
3) Freud apresenta portanto uma espécie de sobreposição da prática psicanalítica no contexto medieval das bruxas - e o paralelo indicaria, por exemplo, a possibilidade de pensar a transferência entre juiz e bruxa, ou ainda, a carga de "realidade" nas "confissões" das bruxas (assim como se pode pensar a carga de "realidade" nos relatos de abusos e violações nos pacientes de Freud). Esse é o nó central de parte das pesquisas iniciais de Carlo Ginzburg: em Os andarilhos do bem, por exemplo, de 1965, ele escreve que "a riqueza da documentação friulana permite reconstruir esse processo", ou seja, o processo progressivo de distorção dos relatos das "bruxas" em direção a uma demonologia oficial, desenvolvida pela Inquisição, "mostrando como um culto de características nitidamente populares, como o que tinha o seu centro nos andarilhos do bem, foi pouco a pouco se modificando sob a pressão dos inquisidores. Mas essa discrepância existente entre a imagem proposta pelos juízes nos interrogatórios e aquela oferecida pelos acusados permite alcançar um estrato de crenças genuinamente populares, depois deformado, anulado pela superposição do esquema culto" (tradução de Jônatas Batista Neto, Companhia das Letras, 1988, p. 8).
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