quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Fantástico de biblioteca

Hans Baldung, Bruxas, 1508, detalhe
1) O problema de Carlo Ginzburg com as bruxas e os inquisidores é um problema de arquivo e de leitura - daí a validade da lição de Auerbach de "ler lentamente" (e no caso das analogias feitas por Freud entre as bruxas e os paranoicos o problema também está posto da mesma forma, uma vez que tudo que resta das bruxas - ao menos daquelas bruxas medievais - é justamente o arquivo). Daí a produtividade da descoberta de Ginzburg, segundo ele próprio: nem a versão da bruxa, nem a versão do inquisidor, mas um processo progressivo de mescla desses registros, algo que se dá no tempo, no arquivo e no discurso. Para Freud, o caso Schreber funcionaria não apenas como uma ligação efetiva entre o discurso do paranoico e das bruxas (análogos na riqueza de detalhes e sobretudo na carga religiosa e sexual das imagens), mas também como a inauguração dessa cena hermenêutica feita de texto, discurso e arquivo (porque Freud faz questão de frisar que sua análise do caso Schreber foi pautada quase que exclusivamente pela leitura das Memórias).
2) Isso adquire importância na medida em que se pensa que os casos clínicos de Freud, que são e serão todos cenas de interpretação, de leitura, só existem hoje como arquivo, da mesma natureza daqueles casos de interrogatório investigados por Carlo Ginzburg. Talvez consciente dessa dinâmica temporal (como fica provado em vários trechos de sua obra, especialmente no que diz respeito às cartas enviadas a Fliess, por exemplo, ou nos vários prefácios para reedições, já no fim da vida), Freud intercalou a atividade clínica com a interpretação cultural, ou ainda, a interpretação distanciada do arquivo, forçosamente distanciada, dada a natureza textual desse acesso (assim como foi o caso com as Memórias de Schreber, também ocorreu com Dostoiévski, Leonardo da Vinci, Jensen ou Hoffmann).
3) Essa interpretação forçosamente distanciada do arquivo recebeu de Foucault, em texto sobre Flaubert, o nome de "fantástico de biblioteca" (mas ocupa posição central também na discussão sobre as "vidas infames", que são apreendidas de forma tênue na trama do arquivo). Foucault rastreia em Flaubert uma espécie de coleção de monstros e fantasmagorias resgatados dos interstícios do arquivo da história,  elementos que são transfigurados pela ficção e, a partir disso, ganham nova vida (uma vida que está entre o  imaginativo e o documentativo). "O quimérico", escreve Foucault, "nasce da superfície negra e branca dos signos impressos, do volume fechado e poeirento que se abre para um voo de palavras esquecidas" (Michel Foucault. "Posfácio a Flaubert (A Tentação de Santo Antão)" (1964). Estética: literatura e pintura, música e cinema, tradução de Inês Autran Dourado Barbosa, Forense Universitária, 2001, p. 79).

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