quarta-feira, 30 de março de 2011

Talismãs

1) Em seu ensaio sobre Walser (Serrote, 5), Sebald diz que foi com muito cuidado que ele se aproximou da obra de Robert, sempre pelas bordas, nunca com muita urgência. Para Sebald, Walser lembrava seu avô - eles morreram no mesmo ano, 1956. Sobre a morte de seu avô, Sebald escreve: nunca fui capaz de superar. A julgar pelas fotos que acompanham o ensaio, foi o avô quem passou ao pequeno Sebald o gosto pelas caminhadas. Lá está ele, de calças curtas, segurando um pedaço de pau, de mãos dadas com o avô, olhando para a câmera (será que estava num tripé? será que havia uma terceira pessoa?).
2) Assim como Walser e seu avô, Sebald valoriza a errância. O exercício da caminhada parece não guardar qualquer relação com a utilidade ou mesmo com aquilo que entendemos hoje como exercício. Isso é certo. Os livros de Sebald sempre surgem depois de muitas caminhadas, sem que haja um destino fixo, uma intencionalidade primeira. As fotos estão lá para marcar essa cartografia do acaso - e Sebald não apenas como um fotógrafo atento, mas como um colecionador, aquele sujeito que vai coletando uma porção de elementos negligenciados, jogando dentro da mochila sem pensar muito na razão. E um dia a caminhada se encerra, Sebald volta para casa e despeja sobre a mesa de trabalho todos os talismãs encontrados. E sobre essa mesa, na dimensão deshierarquizada desse horizonte plano, ele faz sua montagem. Reconhecemos os elementos, mas o efeito é sempre único. É impossível não se emocionar com a franqueza desse arranjo que só Sebald sabe montar.
3) Agamben diz que vê em Benjamin e em Robert Walser a presença do tempo messiânico (glorioso, pleno) no tempo profano - e essa presença se dá a partir de formas míopes e distorcidas, de elementos que hoje são considerados infames e sem valor. É a partir do contato com esses objetos e desejos de pouco valor que se dá a experiência da redenção - a réstia de luz que nasce em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção, escreve Agamben. Essa relação com o perdido (que Sebald cultivou em seus livros e que me ensinou a cultivar a partir da leitura de seus livros) é algo como uma vida póstuma que aproveitamos ainda no impossível do presente. Talvez sobreviva ainda na ficção um pouco dessa experiência passada adiante, não mais dentro da família ou de um círculo comunitátio, mas que escolhemos quando escolhemos os livros que lemos.

3 comentários:

  1. Fiz um post sobre minhas impressões de Sebald, Falcão. E, por ironia, ao adicionar minha conta perdi o post. Volto depois, porque Austerlitz tem me marcado muito.

    /Pedro Cunha

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  2. Muito bom teu texto, trabalhando em um ensaio sobre os últimos livros do mexicano Sergio Pitol fiquei pensando na relação entre os hábitos cotidianos do escritor (longas caminhadas, por exemplo) e suas formas narrativas, tb estes livros de Pitol estão construidos em uma mistura de crítica, ficção, autobiografia, relato de viagem...

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  3. Teu comentário, Rafael, me lembrou a relação que o Walter Benjamin estabelece entre a escrita de Proust e sua asma, como se a doença de Proust determinasse a cadência ofegante de suas frases. E sobre Pitol, que gosto muito e acho que nunca escrevi aqui, essa movimentação que influencia a prosa está evidente e fantasticamente plasmada em "El viaje" - q vc certamente conhece melhor que eu.

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