terça-feira, 15 de março de 2011

Boato

1) Jacques Derrida publicou inúmeros livros híbridos - mesclados, atravessados, esquisitos. Como em Joyce: a leitura de um livro deve levar quase tanto tempo quanto sua escritura. Não li todos - desista -, mas gosto bastante de O cartão-postal. A primeira metade é ficcional, biográfica. Um diário de Derrida, de 1977 a 1979. Funciona um pouco como O mal de Montano, um pouco como aquele trecho do diário de Calvino publicado em Eremita em Paris. Na entrada do dia 8 de julho de 1979, Derrida conta uma história curiosa: um amigo canadense lhe diz que Serge Doubrovsky, no meio de uma conferência que dava em Montreal, disse à plateia: Jacques Derrida está fazendo análise. Derrida acha graça, porque é mentira, e lembra outro caso, ocorrido em 1977: Jacques Lacan está em seu seminário - o seminário de número 24, L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre (se você quiser traduzir isso, boa sorte) - e de repente fala para a plateia: esse rapaz, Jacques Derrida, está em análise.
2) Derrida gosta de deixar claro, e o faz também nesse dia, 8 de julho de 1979: nunca passou pela situação analítica. Sua análise se dá, talvez, no trabalho da escrita, na escuta dos seminários. Quando René Girard pergunta a Lacan o que acha de Derrida, Lacan responde: tudo muito bem, tudo muito bom, mas a diferença entre nós é que ele não lida com pessoas em sofrimento. E agora? Derrida encontra falogocentrismo e metafísica da presença também na cena analítica - nessa cena do véu que separa o Santo do Santíssimo no Tabernáculo do Senhor, aquele construído pelos levitas quando o nomadismo era ainda uma lembrança recente. E Derrida vê essa cena da separação se repetindo em todos os cantos - e os sacerdotes da separação como acompanhantes.
3) Derrida não fala, mas Doubrovsky é o sujeito que primeiro mencionou a expressão "autoficção" - utilizada também por Vila-Matas justamente em O mal de Montano. Derrida também não fala, mas o chiste do rapaz muito provavelmente veio de Lacan, a fonte do boato. Derrida se pergunta: o que fiz para que a verdade de seus desejos esteja na indecidibilidade de minha situação analítica, sempre postergada, sempre suspensa? A verdade do desejo: o que quer que seja, está sempre por trás do véu.

3 comentários:

  1. Derrida pra mim é ilegível, mas o Antônio Marcos me recomendou também O Cartão-Postal. Fiquei curioso.

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  2. Cara, eu te entendo. Mas acho que o pulo do gato está em ver a suposta ilegibilidade como uma amizade, uma ética, e não como uma sacanagem, algo que o autor faz de graça, pelo prazer de ser hermético. "O cartão-postal" vale a atenção - procura também aquele que Derrida escreveu com Bennington, chama-se "Jacques Derrida".

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  3. Esses são os meus dois favoritos - na verdade, os únicos que li de fato.

    Os textos do Rorty sobre Derrida são bem bons tb.

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