sábado, 2 de novembro de 2019

Redobre fúnebre

"Em seu último livro de ensaios, Profanazioni, que é uma tentativa de retirar os homines sacri de seu círculo de indecidibilidade, o filósofo italiano Giorgio Agamben evoca a famosa conferência de Foucault O que é um autor? Relembra Agamben a drástica separação que Foucault estabelecia entre a função-autor e o autor como indivíduo, e que o levara a repetir, em várias oportunidades, que a marca do escritor residia na singularidade de sua ausência, aguardando-lhe, no jogo escriturário, o papel de morto.

(...)

Ora, essas considerações levam Agamben a concluir que um autor assinala tão-somente uma vida que foi jogada na obra – e que foi jogada como obra. Para ilustrar essa noção de autor como gesto, o filósofo se vale do verso inicial do "Redobre fúnebre pelos escombros de Durango", o poema XIII de Espanha, afasta de mim este cálice [de César Vallejo]. 

Fiel ao princípio mallarmaico de que rien n'aura lieu que le lieu, Agamben se questiona se o sentido desse verso – "Padre pó, tu que sobes da Espanha" – veio antes ou depois de Vallejo escrever o verso. Nada nos garante que ele tenha primeiro imaginado e depois escrito o verso que nos comove. Aliás, essa hipótese (o sujeito precede sempre o texto) é a menos plausível de todas que porventura imaginemos. 

É bem mais provável que só depois de ter escrito essas palavras o sentimento que elas encerram tenha se tornado real para o indivíduo César Vallejo, o que leva Agamben a concluir que il luogo – o, piuttosto, l'aver luogo – del poema non è, dunque, né nel testo, né nell'autore (o nel lettore): è nel gesto in cui autore e lettore si mettono in giocco nel testo e, insieme, infinitamente se ne rittraggono [o lugar - ou melhor, o ter lugar - do poema não está, pois, nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso], de tal modo que o autor é tão-somente a testemunha, o fiador de sua própria ausência na obra, cabendo ao leitor, por sua vez, retraçar essa ausência como infinito recomeço do jogo"


(Raul Antelo, "O autor como gesto. À memória de Ronaldo Assunção", disponível aqui)


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