sábado, 16 de novembro de 2019

Mnemotécnica do leitor

Os textos, ainda que registrados no papel (inscritos, marcados), mudam com o tempo. A escrita é a mesma - a sucessão de letras, palavras, frases - mas a passagem do tempo (sua organização naquilo que chamamos História) transforma seus significados - é a lição do Pierre Menard de Borges, por exemplo, ou da filologia imaginativa e metafísica de Walter Benjamin. 

Em paralelo a isso, existe o processo muito mais misterioso da mudança do olhar do leitor, sua virtualmente infinita capacidade de mudar de ideias e interesses. Um leitor diante de Guerra e paz, de Tolstói, por exemplo, lerá livros completamente diferentes caso saliente em sua leitura tópicos (temas, metáforas, sensações) distintos: a guerra, o amor, a descrição das vestimentas, a interferência do narrador, a morosidade, o tom épico, a presença de animais, a presença de mulheres, a ausência dos astros, a insistência na cor vermelha, a repetição de advérbios de modo, a filosofia, a religião, as técnicas de manejo agrícola:

o comandante em chefe queria ver o regimento exatamente nas mesmas condições em que fazia a marcha - de capote, mochila, sem preparativos de nenhuma espécie (p. 246)

Os franceses estavam apagando o incêndio, espalhado pelo vento, e isso dava tempo para os russos recuarem (p. 392)

a figura do pequeno e insignificante Napoleão (p. 610)

começaram a encontrar uma planta semelhante ao aspargo que chamaram de doce raiz de Maria, e se espalhavam pelos pastos e pelos campos em busca daquela doce raiz de Maria (que era muito amarga), desenterravam-na com os sabres e a comiam, apesar das ordens de não comer aquela planta nociva (p. 817)

Tudo aquilo tinha o cheiro, o apelo, o gosto de Aníssia Fiódorovna (p. 1047)

O carroceiro, de sandálias de palha, correu para a parte de trás da telega, enfiou uma pedra embaixo da roda traseira, sem nenhuma proteção pneumática, e pôs-se a ajeitar os arreios do seu cavalinho que estava parado (p. 1583)

o fato grandioso e inevitável do incêndio e do abandono de Moscou (p. 1731)

o lacaio veio à sala comunicar que o conde Rostóv havia chegado (p. 1963)

A Sociedade Bíblica ocupa agora todo o governo (p. 2390)

aquilo que conhecemos, chamamos de leis da necessidade; o que desconhecemos, chamamos de liberdade (p. 2485)


(Liev Tolstói, Guerra e paz, trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2011)

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