Leio Opus Gelber: retrato de un pianista, de Leila Guerriero, uma meditação sobre a criatividade e a arte, sobre a relação do indivíduo com seu ofício e a percepção dessa dinâmica por parte de quem está de fora. A princípio, trata-se da história do contato de Guerriero com o pianista argentino Bruno Gelber, nascido em 1941, eleito um dos cem melhores pianistas do século XX. Tema e personagem fazem pensar de imediato no Glenn Gould de Thomas Bernhard, em O náugrafo (o professor dos três personagens de Bernhard, Horowitz, é mencionado várias vezes no livro de Guerriero).
O livro de Guerriero é ao mesmo tempo complexo e terno, sentimental - ou seja, é visível a complexidade da forma, do modo como os diversos testemunhos são costurados, sobrepostos, editados e montados; mas é também visível o comprometimento da narradora com o personagem, seu envolvimento emocional, sua angústia diante do desejo de fazer justiça às décadas de maníaca dedicação de seu personagem à arte. Das várias tensões que percorrem a narrativa, uma delas - talvez a mais reiterada - é a tensão entre movimento e permanência, viagem e lar (tema que é espelhado na dificuldade de mobilidade de Gelber, que teve poliomielite quando criança, que deixou sequelas na perna esquerda).
Uma das principais conquistas de Gelber foi justamente a de se tornar um pianista mundialmente reconhecido apesar da dificuldade de se mover. Uma questão decorrente daí é: por que voltou à Argentina depois de quase 50 anos vivendo na Europa? E por que vive em um prédio localizado em uma área degradada da cidade? O retrato de Gelber envolve, portanto, o contraste entre seu apartamento ricamente decorado e os camelôs na calçada, doze andares abaixo. A atenção de Guerriero à influência da casa na subjetividade do artista é, nessa perspectiva, bastante benjaminiana - faz pensar no que escreveu Benjamin sobre as mudanças de endereço constantes de Baudelaire ou seus comentários sobre o interior ("estojo", "veludo") da casa burguesa.
A narradora alcança o artista praticamente no fim de seu percurso - de volta a Buenos Aires, com cada vez mais dificuldade para se locomover. Só ouve (dele e de outros) acerca de seus sucessos, suas viagens e, sobretudo, de sua técnica no piano, sua paixão na interpretação. Esse ponto é central para a narrativa e nunca mencionado diretamente: a narradora nunca presencia a atuação do artista no piano. Sua performance é sempre um ouvir dizer. O livro se encaminha para as últimas 50 páginas quando surge a pergunta: "posso ver você praticar?". O artista responde que sim, mas isso nunca acontece. Nessa perspectiva, Gelber surge como uma espécie de Bartleby, ou seja, como o artista que tem o domínio não apenas do fazer mas também do não-fazer (da "potência-do-não", para dizer com Agamben em seu comentário a Aristóteles).
Em alguns momentos, a narradora inclusive comenta o desconforto do artista diante do registro da arte, ou seja, diante da possibilidade de gravação da arte, diante da possibilidade de contato com a arte para além da performance do artista (Gelber gravou poucos discos, esclarece ela, e resiste à ideia de gravar mais). No lugar da visibilidade imediata da performance, está o anedótico, o legendário, a máscara, a cortina das várias versões de inúmeros acontecimentos. A narradora sabe que Gelber é um artista genial, mas nunca comprova - a narrativa é apresentação desse fato a partir da perspectiva de várias testemunhas e, sobretudo, do artista (que, por sua vez, fala pouco da técnica, da performance - preferindo contar várias vezes a situação em que teve que comer um mosquito (cuspir seria pior) em um palco italiano).
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