quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Ciocchini, 2

O ensaio de Ciocchini vale-se tanto da forma quanto do conteúdo para passar uma mensagem de permanência heterogênea dos tempos, uma permanência que pode ser acessada somente a partir do trabalho sério e continuado de leitura – algo que envolve a percepção de uma “angústia”, a angústia da geração vindoura para Ciocchini.

Nessa perspectiva, temos um contexto complexo que articula variados níveis de experiência, que tocam tanto a vivência particular da cultura (a ida do ensaísta ao Instituto Warburg, sua preparação humanista rigorosa) quanto o cotidiano social que marca a passagem de um regime democrático para um regime ditatorial (o espaço de vanguarda construído no Instituto de Humanidades, em seguida dissolvido; a percepção de Ciocchini de que suas ideias e sua experiência de pesquisador e leitor poderiam servir, eventualmente, para a reconstituição de uma postura perdida diante do conhecimento e da cultura).

O modelo de heterogeneidade, que serviu tanto para Ciocchini como também para a argumentação deste meu ensaio, será o do atlas de Aby Warburg, compreendido, segundo a definição de Georges Didi-Huberman, como uma sorte de “sismografia de tempos móveis”. O atlas se apresenta, portanto, como registro provisório de uma série de imagens, tanto visuais quanto históricas, e que problematizam esse pertencimento duplo a cada vez que são requisitadas. O trabalho crítico de Warburg toma como pressuposto, e assim o fará também Ciocchini, a heterogeneidade inerente aos fragmentos presentes no arquivo. Não há qualquer pretensão de originalidade em qualquer dos fragmentos compostos no Atlas, o que desviaria o esforço hermenêutico em direção a uma crítica genética ou à formação de um repertório hierarquizado de repetições – avatares de um projeto essencialista e, consequentemente, redutor.

Monta-se um mosaico de referências a partir desses fragmentos estabelecidos por Ciocchini em seu ensaio, um mosaico que articula tanto a teoria de matriz warburguiana (a sobrevivência da Antiguidade, a contínua atenção às sobrevivências de temporalidades e geografias soterradas pelo discurso hegemônico) quanto a apropriação latino-americana dessa mesma matriz (o “humanismo contemporâneo” de Ciocchini a ser apropriado como uma tática de permanência desse legado crítico de resgate das heterogeneidades históricas, ou seja, a própria disposição dos fragmentos ensaísticos de Ciocchini como um espelhamento do contexto de perda que em breve iria se instalar na América Latina). Proponho uma leitura do ensaísmo breve de Ciocchini como uma estratégia textual carregada de complexas intenções – aquelas que remetem a uma operacionalização das teorias warbuguianas (os motivos arcaicos nos textos de Saint-Exupéry e René Char, por exemplo) e a uma operacionalização da reivindicação política no âmbito do ensino e da aprendizagem.

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