quarta-feira, 21 de julho de 2021

Notas alheias


1) O modo como a ficção lida com os resíduos textuais de terceiros: alguém encontra uma caixa, uma pasta, um conjunto de papeis, e com isso tem acesso a um tempo remoto ou a uma perspectiva diversa da subjetividade de alguém conhecido. Em Respiração artificial, Renzi encontra uma caixa dentro do guarda-roupa de seu pai; dentro da caixa estão os recortes de jornal sobre o caso "Marcelo Maggi", o tio historiador de Renzi; essa primeira caixa leva a outras, ou seja, os dois baús de Enrique Ossorio, um com dinheiro, outro com os papeis (que passam para as mãos de Maggi e, muito depois, para as mãos de Renzi). Ossorio, além disso, é o autor das muitas cartas que pontuam o romance de Piglia (mobilizadas também pela leitura paranoica do censor Arocena).

2) De forma bem mais linear (e "cartesiana", para usar um dos personagens centrais do romance de Piglia), Martín Kohan, logo no início de Dos veces junio, apresenta também a questão dos resíduos textuais de terceiros: um "caderno de notas" está aberto, "no meio da mesa"; ao lado do caderno está a caneta utilizada para escrever a única frase à vista: a partir de que idade se pode começar a torturar uma criança? O narrador sente o impulso de corrigir uma falha ortográfica na escrita - diz que não suporta esse tipo de falha e com isso ressalta que o diferencial da violência ditatorial é sua capacidade de esquecer o conteúdo (o teor monstruoso da frase) e se dedicar exclusivamente à forma (das leis e das regras; o superior do soldado-narrador, o Dr. Mesiano, dirá mais adiante: Lo importante era llevar un ritmo metódico, porque en la vida, según decía el doctor Mesiano, todo es cuestión de método).

3) "Deixo o tempo correr, leio ao acaso. Também me dedico ao livro da Ludmer sobre Onetti, que estou lendo com muito interesse. Bom começo, os dois primeiros capítulos com excelentes arremates sobre o corte e o início da narrativa, ao mesmo tempo há como que uma superinterpretação, que faz pensar nos excessos de uma crítica que acrescenta significados próprios e que pode ser lida como a autobiografia do próprio crítico, que sem saber escreve sobre si mesmo" (Ricardo Piglia, Os anos felizes: diários, volume 2, trad. Sérgio Molina, Todavia, 2019, p. 439, 2 de dezembro de 1975).

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