1) As ligações possíveis entre messianismo e deambulação, entre exílio/movimentação/percurso e transformação político-religiosa. A teoria da deriva de Guy Debord, por exemplo: o ato de andar tomado como a primeira fase em direção à consolidação científica da psicogeografia, funcionando também como exercício participativo, ativa mobilização contra a apatia da sociedade do espetáculo.
2) Para Cristo, toda transformação envolvia uma deriva, e ele também enfrentava - segundo sua perspectiva - um cenário de apatia. A comprovação de sua presença messiânica se dá a partir da atualização de uma deriva, de um percurso - chegar à cidade através de um portão determinado, de uma forma determinada; a constante palavra de ordem de abandonar a vida e segui-lo, ou seja, colocar-se em movimento. Cristo atualiza as derivas do passado: o percurso impossível através do Mar Vermelho; a destruição das muralhas de Jericó.
3) A destruição das muralhas acontece depois de sete dias de circumambulação - sete sacerdotes, sete voltas, sete trombetas, e o grito de guerra final em uníssono (Josué, 6; 1-5). A imagem mítica de um ato revolucionário, a destruição de um regime a partir do desenvolvimento ritualístico de um percurso, de uma deriva - percurso que é completado pela voz, pela vocalização, pelo canto e pela dança, ou seja, pela ocupação imaterial (e simbólica) do espaço.
4) Bruce Chatwin revisita esse substrato arcaico em O rastro dos cantos - a ocupação imaterial dos aborígenes como estratégia de resistência à colonização. Em Godot, Beckett encena a apatia e a irresolução justamente a partir da exaustão da deriva - o percurso é circular, viciado. Em Correr, Jean Echenoz usa o aspecto tragicômico da deriva de um único homem - Emil Zatopek - para ressaltar a apatia de todo um regime totalitário.
5) "Na manhã do dia 15 de julho de 1927", escreve Elias Canetti, "aconteceu algo que exerceu a mais profunda influência tanto na minha vida posterior como na composição de Auto-de-fé". Canetti viu a multidão em deriva, o incêndio do Palácio de Justiça de Viena e a morte de noventa pessoas na repressão policial. "Já se passaram 46 anos, e ainda trago em mim a excitação daquele dia. Foi a coisa mais próxima de uma revolução que já vivenciei de corpo presente" ("O primeiro livro", A consciência das palavras, trad. Márcio Suzuki, Cia. das Letras, 1990, p. 241-242).
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