Antes da Revolução, no auge do formalismo russo, Chklóvski dedicou tempo ao Tristram Shandy de Sterne, livro-paradigma de suas teorias - um livro que pensa a si próprio enquanto acontece na leitura e, nesse pensamento, revê e questiona os procedimentos que o tornam possível, indo e voltando no tempo e, principalmente, lembrando continuamente ao leitor sua natureza material, sua condição de artifício.
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Zoo, apesar de breve, segue esse modelo: frases curtas, cortadas; cartas que questionam o conteúdo de cartas anteriores; cartas que declaram a inexistência da destinatária/do destino/do tema ("Alya é somente a realização de uma metáfora", diz ele na Carta XXIX); relato do cotidiano que se interrompe para a enunciação de uma parábola arcaica...
Em uma lenda bogomilita, Deus quer pegar areia do fundo do mar.Mas Deus não quer mergulhar. Manda o Diabo e lhe ordena: "Quando pegar a areia, diga: não sou eu quem pega, é Deus".O Diabo mergulha e vai ao fundo. Pega a areia e diz: "Não é Deus quem pega, sou eu".Um Diabo cheio de amor próprio.A areia se dissolve. O Diabo retorna, lívido.Deus o manda ao fundo novamente.O Diabo alcança o fundo com esforço, agarra a areia e diz: "Não é Deus quem pega, sou eu".A areia se dissolve. O Diabo de novo retorna, sem fôlego. Deus o manda ao fundo pela terceira vez. Nas fábulas se faz tudo três vezes.O Diabo entende que não há alternativa.Ele não quer estragar a trama. Talvez tenha chorado, mas mergulhou. Nadou até o fundo e disse: "Não sou eu quem pega, é Deus". Pegou a areia e retornou. E Deus, com a areia que o Diabo, por ordem divina, pegou do fundo do mar, criou o Homem (Zoo o lettere non d'amore. tradução do russo ao italiano por Maria Zalambani. Sellerio editore, 2002, p. 75-76).
...cartas sobre cartas; cartas de amor que não podem falar de amor; em suma, permanente e anunciada atenção ao suporte, às condições históricas da enunciação e ao que é necessário fazer para que se faça sentido ("Você diz que sabe como é feito o Dom Quixote, mas não sabe escrever uma carta de amor", escreve Alya na Carta XXVIII). Está aí não apenas Sterne, mas também Macedonio Fernández, contemporâneo de Chklóvski - o romance eterno, não porque é interminável, inesgotável, total, mas porque recomeça incessantemente a partir dos elementos dados, recombinados e remontados.
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