sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Zürau



"Em 12 de setembro de 1918, aos 35 anos, muitos dos quais marcados pela tuberculose que acabaria por matá-lo, Franz Kafka recusou a internação no sanatório em que seus médicos queriam confiná-lo e partiu para a aldeia de Zürau, onde vivia sua irmã Ottla. Decidira passar ali algumas semanas de repouso; acabou ficando pelo que chamaria de 'os oito meses mais felizes da minha vida'. Tratado pela irmã, sentia-se bem-disposto e descansado; comia, bebia e lia tão-somente autobiografias, obras filosóficas e antologias de cartas em tcheco e em francês. Um mês após a chegada, recomeçou a escrever: nem contos nem um novo romance, mas reflexões, fragmentos, aforismos que viriam a ser publicados em 1931, sete anos depois de sua morte, sob o título de Meditações sobre o pecado, o sofrimento e a esperança pelo amigo Max Brod."


(Alberto Manguel, A cidade das palavras, trad. Samuel Titan Jr., Cia das Letras, 2008, p. 57-58).
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"A casa de Ottla ficava na praça do mercado, ao lado da igreja. Exceto pelos amigos e parentes, que sempre ameaçavam vir em visita, a situação aproximava-se daquela redução a um mínimo de elementos a que Kafka tendia por vocação em sua escrita - e que bem gostaria de estender a toda a vida" (p. 258)

"Mas, como bem sabia Strindberg, o inferno está pronto a irromper de uma hora para outra, anunciado por um ruído. Em Zürau, será o barulho dos ratos. A primeira crônica, semelhante a um boletim de guerra, encontra-se numa carta a Felix Weltsch, de meados de novembro de 1917: 'Caro Felix, o primeiro grande defeito de Zürau: uma noite de ratos, uma experiência medonha. Saí ileso e meus cabelos estão mais brancos do que ontem, foi o horror dos horrores'" (p. 259)

"O mesmo amálgama de cômico e de atroz, que é um dom de Kafka como de certos versos shakespearianos de uma simplicidade arcana, mostra-se em todas as crônicas epistolares sobre os ratos de Zürau, donde nascerão um dia as especulações da Toca e os episódios de Josefina a cantora ou o povo dos camundongos. Para Kafka, o 'povo dos ratos' seria sempre a imagem última da comunidade" (p. 261).

(Roberto Calasso, K., trad. Samuel Titan Jr. (sim, de novo!), Cia das Letras, 2006)

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