sábado, 8 de julho de 2023

A travessia



1) A recorrência do motivo da travessia em Sebald, algo que evoca Homero, Ulisses, a Divina comédia, e assim por diante: em Vertigem, um dos elementos de ligação entre os quatro capítulos é a evocação do caçador Graco de Kafka (um morto-vivo que roda o mundo sem poder aportar sua embarcação em lugar nenhum); ainda em Vertigem, a frase inicial do romance diz respeito precisamente a uma travessia, "em meados de maio de 1800", quando Napoleão e seus trinta e seis mil homens atravessaram o "Grande São Bernardo", empreitada considerada até então "como praticamente impossível".

2) No final de Os emigrantes, no capítulo de Max Aurach/Max Ferber (também a travessia de um nome, de uma identidade, de um afastamento com relação a Frank Auerbach), o narrador viaja a Bad Kissingen e pega uma balsa, tirando (e mostrando) uma fotografia da funcionária que guia a embarcação (uma passagem que vem imediatamente depois da visita ao cemitério, como um retorno da terra dos mortos); em Os anéis de Saturno, o narrador pega um pequeno barco para ir até Orford Ness, antigo espaço de testes secretos do governo britânico durante a guerra fria (uma paisagem pós-apocalíptica, escreve o narrador, talvez a imagem do nosso mundo depois do fim). 

3) De uma perspectiva biográfica, há certamente a travessia que leva do professor ao escritor, os decisivos anos da década de 1980, nos quais Sebald começa a publicar seus exercícios narrativos em revistas. É possível pensar ainda em uma travessia anterior, igualmente decisiva, aquela do Canal da Mancha, que o leva como jovem professor/estudante a Manchester em 1966 (essa primeira travessia leva também do alemão ao inglês, uma travessia linguística, contudo, que não é completada, que não é levada a suas últimas consequências, já que Sebald sempre utilizará o alemão como sua língua de trabalho, de narração).

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