A cozinha da casa de Goethe em Frankfurt |
1) Em um fragmento não publicado durante sua vida, intitulado “Lendo romances” (Rua de mão única), escrito por volta de 1928, Walter Benjamin aponta que romances devem ser “devorados”, que são “um prazer de consumo”: o leitor deve absorver o que acontece. Nesse ponto, Benjamin alcança um de seus típicos aforismos certeiros: “A arte do romance, assim como a arte da cozinha, começa no momento em que a matéria crua termina”. No caso do romance, a “matéria crua” é a experiência direta, que a literatura usa, transforma, transcende. Se existe uma Musa do romance, continua Benjamin, ela precisa ser uma espécie de “fada da cozinha” (Küchenfee), devendo atuar sobre a matéria crua do mundo, transformando-a em algo “com gosto” ou “sabor”: criar um romance é criar um prato – processos, fases de cocção, tempero.
2) Para Benjamin, o romance é sempre a experiência do outro, traduzida em linguagem complexa e mediada pela concatenação das estruturas formais. Por isso é diverso de uma peça de teatro ou da leitura de um poema, instâncias estéticas que, para acontecer, dependem de uma experiência existencial (estar diante do palco; sentir em si a articulação meticulosa entre métrica, ritmo, rima). A experiência do romance como um todo – como a estrutura complexa que se apresenta em seu todo apenas no ponto final – faz parte da construção existencial de seu protagonista, mas jamais estará em sobreposição plena com ela. Disso decorre a diferença incontornável entre o romance e as formas orais, entre o romance como gênero (e forma) e a narrativa como força, potência ou virtualidade (aquilo que Benjamin tenta rastrear em Nikolai Leskov no ensaio sobre o “contador de histórias”, por exemplo).
3) Benjamin não se dedica ao romance com o mesmo afinco que reserva à poesia, por exemplo, porque o romance é uma forma que não permite a repetição, não permite a interminável retomada (típica do conto oral, da criança que pede à mãe: “de novo”), não permite sequer o resumo – pois o romance sempre inviabiliza as tentativas de esquematização. Nesse sentido, o romance não pode existir para além do “fim” que é inscrito na última página, como uma pedra tumular, uma lápide (a “morte” está estruturalmente inscrita no romance, e por isso Benjamin evita essa forma de arte, algo que se percebe nas entrelinhas de um famoso aforismo em Imagens do pensamento: “toda a obra acabada é apenas a máscara mortuária da sua intenção”).
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