1) Em seu conto "La muerte y la brújula", Jorge Luis Borges apresenta a morte de Daniel Simó Azevedo, "hombre de alguna fama en los antiguos arrabales del norte", um dos homens assassinados por Scharlach para envolver seu inimigo, Lönnrot, em uma trama detetivesca que é, ao mesmo tempo, uma armadilha. Ainda sobre Azevedo, Borges informa que ele era o último representante de uma geração de bandidos que sabia o manejo do punhal, mas não o do revólver. Essa passagem de uma ferramenta de trabalho a outra - do punhal para o revólver - não é apenas um dado material, mas uma espécie de símbolo usado por Borges para falar de várias metamorfoses condensadas: a imigração, a cidade em sua relação com o campo e as fronteiras, a honra, a lei, as comunidades masculinas (a passagem do punhal para o revólver é o signo de uma transformação, talvez de uma decadência).
2) Com isso em mente, ganha nova ressonância uma cena de Roberto Arlt em seu conto "El jorobadito": o narrador, um sujeito esquisito que duvida do amor de sua noiva, um dia conhece em um café um anão corcunda que lhe parece profundamente odioso; ele tem a absurda ideia de levar o anão corcunda à casa da noiva e fazer com que ela o beije - beijar o anão corcunda, para o narrador, seria a prova de amor que dissiparia todas suas dúvidas. Quando o plano dá errado e a noiva recusa o beijo, o jorobadito, evidentemente, aproveita seu protagonismo, saca um revólver, ameaça a todos na casa da noiva e exige seu beijo: é a chance que a sociedade tem de pagar os anos de abuso que sofreu (o aparecimento do revólver é apenas o clímax da construção de um personagem odioso e perigoso).
3) Em Borges, a passagem do punhal para o revólver aparece como um problema, como uma mudança que significa a morte de um mundo; em Arlt, o problema sequer se coloca - o revólver já é um adereço indispensável, perfeitamente integrado à narrativa e ao mundo que explora. Essa dinâmica seria uma possível confirmação textual da hipótese levantada por Ricardo Piglia em seu romance Respiração artificial de que Borges seria o último escritor argentino do século XIX e Arlt, por sua vez, o primeiro do século XX: a passagem do punhal para o revólver, em outros termos, seria também a passagem do século XIX para o século XX.
Esse anãozinho do conto do Arlt é tão hijudaputamente engraçado quanto o anãozinho nó-cego com o qual o Kien do Canetti se enrola, rs. Dois ícones da picardia, kkkk, rs.
ResponderExcluirEu gosto muito da parte em que o narrador do Arlt, um pouco na dúvida, toca rapidamente a corcunda do anãozinho, que inicialmente finge se ofender, mas depois diz: "Sinta-se à vontade! Tomara que a você dê sorte, porque a mim nunca deu!"
ExcluirSim, kkkk, rs. :D
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