sábado, 24 de junho de 2023

Convicção


1) É digno de nota o modo como Auerbach - em seu livro Dante como poeta do mundo terreno - liga o gênio de Dante à sua obsessão, sua fixidez, sua megalomania, sua liberdade de acreditar que estava fazendo algo novo e grandioso, inédito e transformador - a profunda convicção de que era melhor que seus contemporâneos, que era tão bom quanto Virgílio. Com isso, fica posta a questão da relação entre obra e megalomania, algo que Harold Bloom também aponta como decisivo no caso de Shakespeare e sua "invenção do humano" (em certa medida, é o que Bloom vai identificar em todos os poetas fortes em A angústia da influência). 

2) A história do romance no século XX é um desdobramento (e uma intensificação) dessa percepção que Auerbach tem de Dante e que Bloom tem de Shakespeare: logo no início do século, os projetos artísticos de James Joyce e Thomas Mann se desenvolvem sob o signo da desmedida, da audácia, do desejo de renovar as ambições estéticas a cada novo livro (no caso de Joyce, esse movimento fica condensado na passagem do Ulisses para o Finnegans Wake; no caso de Mann, é reiterado várias vezes, de Buddenbrooks em 1901 para A montanha mágica em 1924, com o ciclo José e seus irmãos de 1933 a 1943, com o Doutor Fausto em 1947).

3) Nas últimas décadas do século XX, outros dois casos emblemáticos: em primeiro lugar, Thomas Bernhard, que fez da desmedida de seu ódio (e de vários outros ugly feelings correlatos) o motor de sua ficção e, sobretudo, de seu estilo (desde Perturbação, de 1967, até seu último romance, imenso, pantanoso e inesgotável, Extinção, de 1986); em segundo lugar, Roberto Bolaño, que repete a inconclusão de Joyce (em Finnegans Wake) com 2666, lançado postumamente em 2004, continuação e complexificação da cartografia obsessiva de Os detetives selvagens, de 1998. 

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