1) No trato com Afirma Pereira, de Tabucchi, é preciso ter em mente a dimensão do contato de Pereira com o catolicismo, que termina por moldar, até certo ponto, suas próprias escolhas intelectuais - ele contrata o jovem Monteiro Rossi para escrever necrológios de escritores católicos ainda vivos, como homenagens e celebrações desses escritores. Existe um alinhamento evidente de Pereira com certo conservadorismo católico, que é também um dos eixos do salazarismo, junto com a própria ideia de Cultura e Educação (Salazar era professor, o Professor, catedrático da Universidade de Coimbra, assim como um de seus apoiadores principais, o Cardeal Cerejeira - e aí está tudo posto e misturado, Igreja, Educação e Política). Esse alinhamento também pode ser considerado a partir da perspectiva do judaísmo histórico de Pereira, que Tabucchi avança já na nota introdutória - o que talvez explique também as reticências de Pereira e sua predisposição para o confronto e seu abandono de sua identidade portuguesa no fim do livro.
2) Quando Pereira pede um texto de celebração de algum escritor católico, Monteiro Rossi responde ou com um artigo de elogio a algum escritor revolucionário, ou com um artigo raivoso sobre algum escritor alinhado aos fascismos da época - especialmente o italiano. É possível observar uma espécie de escala da subversão operando no romance: em primeiro lugar, Pereira, banal, alienado, alheio; em segundo lugar, Monteiro Rossi, jovem misterioso, passado obscuro, ideias desconfortáveis; em terceiro e último lugar, finalmente, Marta, a namorada de Monteiro Rossi, a verdadeira Mente Subversiva por trás dos artigos raivosos e dos elogios a Garcia Lorca e Maiakóvski. Se Monteiro Rossi aparece pouco, Marta aparece ainda menos - uma sombra que percorre os desvãos da cidade, conspiradora de uma sociedade secreta revolucionária, como em Los siete locos de Roberto Arlt (publicado em 1929).
3) Marta (Mata Hari?) é uma espécie de mulher fatal, como aquelas que povoam a História abreviada da literatura portátil de Vila-Matas: "Às oito e trinta e cinco, afirma Pereira, entrou no Café Orquídea. O único motivo pelo qual reconheceu Marta naquela moça magra, de cabelo curto e loiro, que estava perto do ventilador, foi ela estar com o mesmo vestido de sempre, de outro modo não a teria reconhecido de jeito nenhum. Marta parecia transformada, aquele cabelo curto e loiro, de franjinha e atrás das orelhas, dava-lhe um ar traquinas e estrangeiro, francês quem sabe. E ademais devia ter emagrecido pelo menos uns dez quilos" (Afirma Pereira, tradução de Roberta Barni, Cosac Naify, p. 101). Marta tem algo de Lady Griffith, a sibilina personagem de Gide em Os moedeiros falsos (francês, católico), ou melhor: Marta tem algo da irrequieta e subversiva Asja Lacis, que justamente nesse mesmo ano de 1938, talvez entre o encontro de Marta com Pereira e a morte de Monteiro Rossi nas mãos da polícia de Salazar, nesse mesmo ano de 1938 Asja é presa pela KGB e enviada ao Cazaquistão, onde ficará presa por dez anos.
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