quinta-feira, 30 de abril de 2020

O bastardo


Vincere, de Marco Bellocchio: a mulher, a razão e a loucura; a descrição da infelicidade, a resistência e a capacidade/coragem de dizer a verdade; uma contranarrativa patográfica que escova a história do fascismo a contrapelo.

Outro detalhe que indica como a "desrazão" de Ida Dalser confronta a "razão" de Mussolini e do fascismo é a menção a Napoleão logo no início do filme: Ida escuta um discurso de Mussolini no qual ele cita o Imperador; horas depois, sozinhos, ela resgata o nome de Napoleão para compará-lo ao futuro Duce; ele diz que não, será ainda maior que Napoleão. A figura de Napoleão, afinal de contas, é uma das mais efetivas metonímias da loucura: identificar-se com Napoleão é a ponta do iceberg que esconde um subterrâneo carregado de megalomania, paranoia e delírio.

Mais do que isso: Bellocchio une a questão da loucura com a questão da bastardia - o filho de Ida Dalser e Mussolini recebe o nome de Benito Albino Mussolini; quando adulto, Bellocchio mostra o filho bastardo em uma cena de imitação do pai, do líder, do Duce e, pouco adiante, mostra o filho-imitador no manicômio, onde morre em 1942 (Mussolini que imita Napoleão, o filho bastardo de Mussolini que, em sua loucura, imita a figura do líder, assim incorporando em sua patografia as duas derivas, da loucura e da bastardia).


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"Assim como o surgimento de Dom Quixote e Robinson no campo da literatura ocidental está em relação direta com uma situação histórica definida - para o primeiro, as aberrações sociais e espirituais causadas por uma ordem teocrática retrógrada; para o segundo, a revolução burguesa de Cromwell e as perspectivas por ela abertas ao sonho individual -, também a trajetória do Bastardo no século da História do romance é propriamente inconcebível sem a escalada de Napoleão. O aventureiro sem nascimento nem fortuna, que, num piscar de olhos, coroa-se a si próprio, instala seus irmãos em todos os tronos da Europa por ele desapropriados e forja-se um império em uma recentíssima república de que é incipiente cidadão, pertence ao romance por todas as fibras de sua personalidade: Napoleão é romance de ponta a ponta, um romance que se faz à medida que influencia os acontecimentos da história. É o Bastardo encarnado, o renegado perfeito que deixa o mundo em polvorosa ao realizar sem escrúpulos nem remorsos o que seus semelhantes mal ousam sonhar. Torna-se então, para o Bastardo contemporâneo, o inspirador, o mestre, o ídolo que não esmaga, mas soergue seus fiéis; e, para o romance moderno, o gênio libertador cuja ação mesma, no limiar entre a ação e o sonho, recua como nunca antes os limites da imaginação."

Marthe Robert. Romance das origens, origens do romance. Tradução de André Telles. Cosac Naify, 2007, p. 179.

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