quinta-feira, 16 de abril de 2020

O discurso e seus outros

Hans Bellmer
"Todos os motivos para reconhecer algo como obra de arte são parciais, mas sua retórica geral é, inequivocamente, europeia. Essa retórica, como bem sabemos, era aplicada repetidamente à área do humano também. De Flaubert, Baudelaire e Dostoiévski, passando por Kierkegaard e Nietzsche, Bataille, Foucault e Deleuze, o pensamento europeu reconheceu como uma manifestação do humano muito do que, anteriormente, era considerado mau, cruel e desumano.

Assim como no caso da arte, esses autores e vários outros aceitaram como humano não somente aquilo que se revela humano, mas também aquilo que se revela desumano - e exatamente porque se revela desumano. A questão, para eles, não era incorporar, integrar ou assimilar o estrangeiro dentro do próprio mundo, mas, ao contrário, entrar no estrangeiro e tornar-se conforme a sua própria tradição. Em minha opinião, não é necessário demonstrar aqui que esses autores, assim como incontáveis outros na tradição europeia, não podem ser facilmente integrados no discurso dos direitos humanos e da democracia. 
Rudolf Schwarzkogler
No entanto, esses autores pertencem, por esse motivo, à tradição europeia, porque manifestam uma solidariedade interna com o outro, com o forasteiro, até mesmo com o ameaçador e cruel, que está muito mais fundo e nos leva mais além que um simples conceito de tolerância. A obra de todos esses autores é uma tentativa de diagnosticar, no interior da cultura europeia, as forças, os impulsos e as formas de desejo que são, em terras estrangeiras, territorializadas. Assim, esses autores mostraram que a característica verdadeiramente única das culturas europeias consiste em tornar alguém permanentemente estrangeiro ao anular, abandonar e negar esse alguém - e fazê-lo de forma mais radical que qualquer cultura que conhecemos jamais conseguiu fazer. De fato, a história da Europa é nada além da história de rupturas culturais, uma constante rejeição às tradições de alguns."

(Boris Groys, "A Europa e seus outros", Arte Poder, trad. Virgínia Starling, UFMG, 2015, p. 220-221)

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