domingo, 16 de outubro de 2022

EB


"Crack Wars [livro de Avital Ronell], como já mencionei, não trata do crack propriamente. Mas do estado alterado filtrado pelas lentes de Emma Bovary, a decididamente nada heroica heroína do romance infame de Flaubert, publicado em 1856 e julgado por obscenidade em 1857, acusado de injetar veneno no corpo social. Apesar do fato de a única droga de verdade no romance ser o arsênico do suicídio de Emma (fornecido pelo odioso, anticlerical e empreendedor monsieur Homais, o farmacêutico da cidade), Ronell lê o romance como uma história que trata fundamentalmente de 'drogas ruins', ao lado de uma angústia suicida e uma violência interiorizada. 

Ao posicionar Emma Bovary e seus vícios comportamentais no centro da sobreposição que envolve 'a liberdade, as drogas e a condição do vício', Ronell sugere implicitamente que, entre todos os informantes disponíveis, 'EB' - com sua maternidade tóxica, as questões alimentares, seus hábitos de leitura ordinários, o esbanjamento, a religiosidade falha, o romantismo burguês, o adultério histericizado e as pulsões de morte - é uma rica fonte de informação para uma investigação sobre questões prementes da liberdade, do cuidado, da nutrição, do desejo e da ansiedade que têm compelido algumas figuras da filosofia, desde Kant e Nietzsche até Heidegger. Apoio esse sábio gesto feminista, em que uma fêmea humana é tratada, sem cerimônias, como um pivô da condição humana. Esse não tem sido um gesto comum"

(Maggie Nelson, Sobre a liberdade: quatro canções sobre cuidado e repressão, trad. floresta, Cia das Letras, 2022, p. 186-187)

*

"Não vejo que sentido pode ter, diz Renzi, escrever algo sobre Asja Lacis. Existem outras mulheres mais interessantes que podem servir de tema para uma narrativa. Por exemplo?, pergunto. Por exemplo, responde ele, a filha de Madame Bovary. Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance, diz Renzi, e se levanta para ir buscar o livro de Flaubert. 'Uma vez vendido tudo, sobraram doze francos e setenta e cinco centavos, que serviram para pagar a viagem da senhorita Bovary à casa de sua avó. A boa senhora morreu naquele ano; como o tio Roualt estivesse paralítico, uma tia encarregou-se da órfã. É pobre e a manda ganhar a vida como fiandeira de algodão' [Elle est pauvre et l’envoie, pour gagner sa vie, dans une filature de coton]. A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin"

(Ricardo Piglia, "Notas sobre literatura em um Diário", Formas breves, trad. José Marcos Mariani de Macedo, Cia das Letras, 2004, p. 77-78)


Nenhum comentário:

Postar um comentário