sábado, 9 de julho de 2022

Névoas

1) O trabalho que Edward Said faz a partir de Joseph Conrad (Joseph Conrad and the Fiction of Autobiography, de 1966, é o marco inicial, mas Conrad aparece ao longo de todo o percurso de Said, que, de resto se dedicou a um trabalho semelhante no contato com vários outros autores) visa, em grande medida, rever criticamente a posição de autores como Habermas, para os quais a modernidade é um fenômeno exclusivamente europeu (o conceito que celebra o "progresso" é, na verdade, fruto de uma dialética de atração e repulsa diante do outro, do estranho e do estrangeiro, dos limites daquilo que se apresenta como o fora: Oriente, Índias, Américas, África, o fim do mundo, o coração das trevas...).

2) Trata-se, portanto, de documentar e descrever a falência de um projeto (um projeto de "iluminar" e "emancipar" que pressupõe uma vasta zona de sombra, de cegueira - blindness and insight, como diria Paul de Man; “Névoas há que olho nenhum dispersa”, como diz a epígrafe de Jean Paul em Os emigrantes, de Sebald). É possível dizer que, em parte, a descrição dessa falência começa já no fim do século XIX (precisamente o campo cronológico coberto por Conrad), quando Nietzsche fala da herança grega como uma deturpação de um saber prévio, heterogêneo e "oriental" e quando Freud inicia a prospecção do inconsciente (a ideia de que a vida consciente recebe interferência de processos "invisíveis" - exatamente como a vida "moderna" é informada pelas violências coloniais, que permanece distantes, recalcadas).

3) É possível também resgatar outro texto de Said por esse perspectiva, Freud e os não-europeus, no qual ele parte das ideias de Freud sobre Moisés e o monoteísmo para chegar em uma discussão acerca dos limites do projeto ocidental do "progresso", do "iluminismo" e da "democracia" (Said como "um humanista à moda antiga que foi forçado pelas exigências da sua história pessoal a participar de tipos de trabalho intelectual que contestavam a tradição na qual ele foi criado", como escreve Terry Eagleton). Um trabalho incipiente de reinvenção da matriz conceitual ocidental para além de sua circunscrição tradicional (a partir da América Latina, por exemplo), a partir da qual se percebe que mesmo um projeto inesgotável como o de Joyce é incompleto (Jewgreek is greekjew. Extremes meet - o contraste com Warburg é instrutivo: Atenas e Oraibi, todas são primas).

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