sábado, 13 de agosto de 2022

As vozes



1) Uma das coisas que mais impressiona o leitor quando entra em contato com Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, é a intensidade de cada capítulo, especialmente aqueles que dão conta dos testemunhos da longa seção "Los detectives salvajes (1976-1996): muitas vezes as cenas, as falas, os personagens, os dramas se acumulam e se lançam em incontáveis direção sucessivamente, sem que haja, ao fim, qualquer tipo de costura rigorosa que organize todo esse esforço (é da ordem propriamente do carnavalesco (e da polifonia) de Bakhtin ou do dispêndio de Bataille, algo que não se explica pela soma de suas partes ou por qualquer sistema pragmático ou concatenado de explicação narrativa). 

2) Voltamos a Urenda falando de Belano, uma frase que serve de miniaturização (Agamben: a miniaturização é a cifra da História) do ethos do romance: Su historia era bastante incoherente. Uma incoerência, contudo, que também não é homogênea ou sistêmica, também não pode ser tomado como um fio organizativo possível - também a incoerência é uma máscara, um recurso, um dispositivo da dinâmica ficcional (ao falar com Urenda, Belano comenta que una vez tuve un duelo, com un tal Iñaki Echavarne, um envio a uma das cenas mais célebres do romance, contada nos testemunhos de Susana Puig, Guillem Piña e Jaume Planells).

3) Já no fim de seu relato, Urenda conta do momento em que acorda e vê Belano e outro personagem fumando e conversando. Ele diz: Transcribir lo que se dijeran es de alguna manera desvirtuar lo que yo sentí mientras los escuchaba. Essa é outra cifra de outro eixo fundamental do romance: o intervalo entre fala e escrita, entre testemunho e registro, entre ideia e realização (a ambivalência do romance que, ao mesmo tempo, "registra" ideias, relatos e sentimentos de uma geração com o mesmo gesto que os "desvirtua"). O dilema de Urenda diante da possibilidade de registrar a fala de Belano é a miniaturização do dilema bem mais amplo dessa entidade - Bolaño? - que arma o romance Os detetives selvagens sobre a "tarefa-renúncia" (no sentido ambíguo que dá Walter Benjamin quando fala da tradução em "Die Aufgabe des Überstzers") de registrar os depoimentos por escrito.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário