sábado, 28 de outubro de 2023

May Goulding


Na Antologia da Literatura Fantástica, Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo colocam duas passagens do Ulisses, de James Joyce: a primeira entrada é intitulada "Definição de fantasma":

O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos.

A segunda entrada é intitulada "May Goulding" e tem relação direta com a mãe de Stephen, presença fantasmática desde o início do romance (quando é postulada a "inelutável modalidade do visível" diante da mãe morta):

A mãe de Stephen, extenuada, surge rigidamente do chão, leprosa e turva, com uma coroa de flores de laranjeira murchas e um véu de noiva rasgado, o rosto gasto e sem nariz, verde de mofo sepulcral. O cabelo é liso, ralo. Fixa em Stephen as órbitas vazias aneladas de azul e abre a boca desdentada, dizendo uma silenciosa palavra.

A MÃE

(com o sorriso sutil da demência da morte)

Eu fui a bela May Goulding. Estou morta.

(Antologia da literatura fantástica: Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo [org.]. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 218-219)

*

Duas estratégias de justaposição de elementos convergem aqui: em primeiro lugar, a estratégia dos compiladores da Antologia de posicionar Joyce em contato com outros textos, não aqueles "habituais" quando se trata do Ulisses, afastando o romance da cena modernista, digamos, em direção ao reino do fantástico, do estranho, do sobrenatural (um deslocamento atípico como aquele que Borges faz em "Kafka e seus precursores"); em segundo lugar, está embutido nos trechos escolhidos o projeto de filiação de Joyce com textos do passado pelo viés do fantasma e da aparição, um encadeamento intertextual cujo desenho aponta saltos com uma extensão de 200 anos: a Comédia de Dante (1321), o Hamlet de Shakespeare (1599), o Tristram Shandy de Sterne (1759), o Ulisses de Joyce (1922).  

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