quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Carson / Bardot



1) Em um de seus ensaios ("Desprezos", sobre Homero, Moravia e Godard), Anne Carson fala de Brigitte Bardot, de sua aparição na tela do cinema, do modo como usava o próprio corpo em cena: na abertura do filme de Godard baseado no romance de Moravia, escrever Carson, Bardot está nua sobre a cama e a câmera "zanza pelo seu corpo e se demora nas suas costas". "Bardot atua sem despreza nessa cena", escreve Carson, e continua: "Seus gestos são simples, transparentes; o tom de voz é serenamente banal. Sua conduta é inocente como a água. Mas, de alguma forma, bem no meio dessa exposição total e totalmente forçada de si, ela desaparece" (Sobre aquilo em que eu mais penso, ed. 34, 2023, trad. Sofia Nestrovski, p. 150-151).

2) No momento de maior exposição, Bardot faz o próprio corpo desaparecer, faz o próprio corpo recusar qualquer tipo de aproximação precisamente porque se faz exposto - uma sorte de surpreendente aplicação imagética do procedimento narrativo inventado por Edgar Allan Poe em "A carta roubada". Georges Didi-Huberman, em seu livro sobre Godard (Passés cités par JLG), escreve: 

Tout simplement parce qu'il permet de revoir quelque chose qui a été vu un jour - un visage, un corps, un geste, un paysage, un édifice, une ville, un acte collectif -, le cinéma apparaît comme une éminente façon de citer le passé: ce qui a été tourné un jour retourne sous nos yeux dans le temps, répétable à loisir, de la projection (p. 67)

3) Aí está a potência do cinema, tal como capturada por Carson e Didi-Huberman, por trás desse "simplesmente": parece simples, mas não é, já que o cinema permite "citar o passado" (um corpo, um gesto, um edifício), devolvendo-o ao presente, "diante nossos olhos", "sob nosso olhar". Não se trata de um retorno neutro do mesmo, como um documento "fidedigno" do que passou/aconteceu; trata-se de uma "projeção", como escreve Didi-Huberman, uma imagem no presente que guarda uma ressonância com o passado (justamente por o passado, na imagem, é "citado": vale a pena retomar o que Compagnon tem a dizer sobre a citação; ou, no que diz respeito à citação do passado pela "projeção", vale a pena retomar o que faz Billy Wilder em Five Graves to Cairo).  

Nenhum comentário:

Postar um comentário