segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Pallaksch


1) Uma questão central para Anne Carson é analisar as "relações profundas" de certos artistas com outros artistas. Quando fala de Francis Bacon, por exemplo, aponta que ele tem uma relação profunda com Rembrandt: Bacon fala em várias entrevistas como ama um de seus autorretratos (estamos no ensaio "Variações sobre o direito de permanecer calado", de 2013, no qual Carson explora vários momentos do livro de entrevistas com Bacon feito por David Sylvester - o ensaio pode ser lido no livro Sobre aquilo em que eu mais penso, tradução de Sofia Nestrovski, Editora 34, 2023).

2) Aquilo que Francis Bacon mais gosta no autorretrato de Rembrandt é o fato de perceber que os olhos não têm órbitas: um trabalho tardio de Rembrandt, contornos difusos, muito escuro. Carson diz que o olhar, aí, não está organizado do jeito habitual, a visão parecer emanar "silêncio"; e é nesse ponto do ensaio que ela alcança o problema geral, o cerne de sua argumentação (as variações sobre o direito de permanecer calado, e como essa "falta de voz" repercute na arte ao longo dos séculos).

3) Dando um salto inesperado - tão típico do ensaio, mais ainda do ensaio tal como praticado por Carson -, ela vai do silêncio de Rembrandt em direção ao silêncio de Paul Celan: um poema em louvor a Hölderlin, que termina com uma palavra intraduzível, repetida: "Pallaksch, Pallaksch". O silêncio, então, se articula com a tradução e com o intraduzível, se articula com a homenagem que Celan faz ao Hölderlin não apenas poeta, mas, sobretudo, tradutor (segundo as pessoas que o visitaram em sua torre, Hölderlin tinha inventado o termo Pallaksch e às vezes o usava para dizer Sim, às vezes para dizer Não).

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