quarta-feira, 14 de junho de 2023

Fluidez e projeto



1) É preciso ter sempre em mente a enormidade do projeto de Balzac em A comédia humana, o modo como atualiza a "narração universal" de Dante e, ao mesmo tempo, depende fortemente das inovações tecnológicas de seu tempo, de sua contemporaneidade, das novas configurações sociais e econômicas (a expansão monstruosa das cidades e dos capitais), etc. Um projeto de proliferação narrativa e editorial como o de César Aira, por exemplo (que deliberadamente joga com a dimensão mercantil da literatura: livros por editoras multinacionais mastodônticas e, simultaneamente, livros por editoras caseiras com capas de papelão feitas à mão), não pode ser entendido sem a mobilização do modelo de Balzac.

2) Em Balzac, a cisão entre narração e julgamento ganha o primeiro plano da narrativa: ao contrário de Goethe, por exemplo, Balzac confere à narrativa uma fluidez que é decorrência de sua suspensão da "tomada de posição", da opinião direta, do juízo de valor, da lição de moral e assim por diante. Os valores não são o horizonte em vista para os personagens de Balzac, como muitas vezes são para Goethe; em Balzac, ao contrário, os valores muitas vezes são obstáculos absorvidos aos discursos dos personagens em seus relatos de sucesso ou insucesso (a legitimidade das escolhas é irrelevante, sequer surge como tema da narrativa).

3) Uma diferença importante entre Stendhal (1783-1842) e Balzac (1799-1850): no primeiro, os valores estão sempre em questão, fazendo parte da dinâmica de progressão da narrativa (uma vez que a tensão entre a realidade e os valores - ou os ideais - é o que dá substância à trajetória do protagonista, como Julien Sorel em O vermelho e o negro), muitas vezes servindo de material de reflexão para a voz narrativa, que suspende a peripécia para comentar (às vezes chamando o leitor como testemunha). Em Balzac, a tensão entre realidade e ideal não é matéria de comentário, e sim uma sorte de posição textual em declive: a partir disso, algo se movimenta, algo se desloca, o suspense se cria e a narrativa (mastodôntica, sem centro fixo, "cem mil romances", proliferativa, sem qualquer intenção de finalização) passa a ocupar novos territórios.

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