Malevich |
É impossível explicar detalhadamente a habitação nas esferas enquanto o Dasein for concebido de um impulso essencial para a solidão. A analítica do Onde existencial exige, consequentemente, que se coloquem entre parêntese todas as sugestões e sentimentos de uma solidão essencial para se certificar das estruturas profundas do Dasein acompanhado e completo. Ante essa missão, o primeiro Heidegger permaneceu um existencialista, no sentido problemático do termo. Ao voltar-se apressadamente para a questão do Quem, ele deixa para trás um sujeito existencial solitário, fraco e histericamente heroico, o qual julga que deve ser o primeiro a morrer e vive no lastimável desconhecimento dos motivos mais ocultos de sua integração às intimidades e solidariedades. Um "Quem" superestendido em um "Onde" confuso pode trazer más surpresas para si mesmo quando pretende, ocasionalmente, ancorar-se no primeiro povo que aparece.
Heidegger em 1934 |
Quando Heidegger, durante a revolução nacional, quis, como grande personalidade, aproveitar-se da maré imperial, ele apenas mostrou que a especificidade existencial, desacompanhada de uma clarificação radical de sua situação no espaço da política, produz o ofuscamento. A partir de 1934, Heidegger sabia, ainda que apenas implicitamente, que sua mobilização no levante nacional-socialista constituíra um caso de "ser-sugado": o tempo, aqui, se tornara espaço. Quem se deixa sugar pelo turbilhão, embora pareça estar aqui, vive em outra esfera, em um cenário distante, em um "Lá" interior impenetrável. A obra posterior de Heidegger extrai discretamente as consequências desse lapso. Da história passada, o iludido revolucionário nacionalista espera para si pouca coisa; retirou-se das empreitadas das potências. Buscará futuramente sua salvação em exercícios de proximidade cada vez mais intimistas.
Aferra-se obstinadamente à sua província anárquica e organiza visitas guiadas à casa do Ser - a linguagem -, qual um porteiro mágico equipado de pesadas chaves e sempre pronto a fazer um aceno cheio de sentido. Nos momentos mais agitados, ele invoca a sagrada esfera parmenídica do Ser, como se tivesse retornado ao eleata, cansado da historicidade como de um espectro funesto. A obra tardia de Heidegger não cessa de reencenar, do começo ao fim, as figuras de resignação de um aprofundamento regenerativo do pensamento, sem jamais alcançar o ponto desde o qual se poderia retomar a questão da instalação original do mundo.
O presente projeto "Esferas" pode também ser entendido como uma tentativa de resgatar - ao menos em um aspecto essencial - o projeto Ser e espaço do subterrâneo em que ficou secundariamente confinado na obra inicial de Heidegger. Somos da opinião de que o interesse de Heidegger pelo enraizamento, na medida em que se pode salvar algo dele, só terá suas legítimas pretensões atendidas mediante uma teoria dos pares, dos gênios, da existência completada. Ter tomado pé na dualidade existente: é essa a medida de autoctonia ou de ancoragem no real que deve ser preservada, mesmo se a filosofia continua a levar a cabo aplicadamente sua obra irrenunciável de desacoplamento da comunidade empírica. Para o pensamento, trata-se agora de reexaminar a tensão entre autoctonia (ab ovo e desde a comunidade) e libertação (em face da morte ou do infinito).
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(Peter Sloterdijk, "Digressão 4: a teoria heideggeriana do lugar existencial", in: Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 308-309).
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