segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

O ofício de viver

"A forma moderna do diário do escritor mostra uma evolução peculiar, quando examinamos alguns de seus principais expoentes: Stendhal, Baudelaire, Gide, Kafka e agora Pavese. A desinibida exposição de egocentrismo se transfere para a busca heroica de apagamento do ego. Pavese nada tem da percepção protestante de Gide de sua vida como uma obra de arte, do respeito pela própria ambição, da confiança em seus sentimentos, do amor por si mesmo. Tampouco tem o sério e apurado compromisso de Kafka com sua angústia pessoal. 

Pavese, que usava o 'eu' tão prodigamente em seus romances, em geral se refere a si mesmo no diário como 'você'. Não se descreve; dirige-se a si mesmo. É o espectador irônico, exortativo, crítico de si. Parece inevitável que a consequência última dessa visão distanciada de si fosse o suicídio. Os diários, com efeito, constituem uma longa série de avaliações e indagações pessoais. Não registram nada sobre o cotidiano ou fatos ocorridos; não há nenhuma descrição de parentes, amigos, amantes, colegas ou reação a acontecimentos públicos (como nos Diários de Gide)."

(Susan Sontag, Contra a interpretação e outros ensaios, trad. Denise Bottmann, Cia das Letras, 2020, p. 66)

1) O ensaio de Sontag sobre Pavese é de 1962 e ela já escrevia seu próprio diário desde novembro de 1947, quando tinha quatorze anos; um traço subterrâneo da genealogia que ela propõe é sua própria projeção como diarista, no futuro, décadas depois e de forma póstuma (ela prepara a recepção do próprio diário);

2) "A busca heroica de apagamento do ego": essa é, sem dúvida, a divisa tomada por Coetzee a partir de T. S. Eliot, especialmente em Juventude, romance de 2002 (a carga ambivalente que Sontag encontra em Pavese também está em Coetzee: o "crítico de si" e "espectador irônico" será amplamente trabalhado por ele em Verão, o romance de 2009);

3) De resto, a breve genealogia apontada por Sontag dá conta de três poéticas fundamentais para a literatura da segunda metade do século XX: Coetzee (não só o "crítico de si" e o "apagamento do ego", mas especialmente o recurso ao "você" ao invés do "eu"); Sebald (o "apurado compromisso" de Kafka com sua "angústia pessoal" foi agudamente notada por Sebald, que reconfigura esse compromisso em Vertigem - resgatando também Stendhal, mencionado por Sontag); e Enrique Vila-Matas (Gide é decisivo tanto para Doutor Pasavento quanto para O mal de Montano, por exemplo);  

Um comentário:

  1. Este "uso do 'você' ao invés do 'eu'" é também notável num livro fininho, muito embora tenha rendido até um filme homônimo, de Georges Perec: "Um homem que dorme". Desde o primeiro momento o protagonista já está diluído numa ironia ácida (ironia, aliás, que é sutilmente ácida mas nunca frontalmente agressiva, talvez haja um impulso de afronta apenas no final do texto, só que aí já não se trata exatamente de ironia...). Paulo Henriques Britto lança mão deste recurso no primeiro conto do seu "Paraísos Artificiais", salvo engano de forma mais branda, quer dizer, um distanciamento sem a exigência implícita do sofrimento/dor instalados.
    Pavese é um dos autores que estão na minha lista de leitura, pena o serem as edições de suas obras tão escassas e, consequentemente, caras.
    "Juventude" foi uma das pouquíssimas obras na qual logrei uma leitura integral através da tela de um computador. História e personagens maravilhosamente escrotos -- para quem não conhece Coetzze recomendaria este romance como porta de entrada.

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