quinta-feira, 21 de maio de 2020

Hotel Eden


1)
O pai de Joseph Cornell era um empresário bem-sucedido do ramo têxtil. Com sua morte, a família perde muitos dos recursos e Joseph eventualmente precisa começar a trabalhar - também ele, durante um período, trabalha com tecidos, vendendo de porta em porta (essa ruptura de um mundo paterno de tranquilidade e abundância liga Cornell a Nabokov, por exemplo, outro artista do detalhe que trabalhava na chave da nostalgia, da alegoria e do resgate de um passado inacessível).

2) A primeira colagem de Cornell, no início da década de 1930 (seu período de ligação mais clara com o surrealismo), mostra uma mulher atravessando uma máquina de costura e, ao fundo, uma fila de trabalhadoras, de costureiras (a costureira, a datilógrafa, a telefonista - a posição da mulher na disseminação da técnica, como fala Kittler - especialmente a partir do caso paradigmático de Kafka e Milena). É possível associar - especialmente tendo em conta o fascínio de Cornell com a França - a cena da colagem ao destino da filha de Bovary, sublinhado por Piglia: "Alguém deveria escrever uma biografia da filha de Madame Bovary. Na última página do livro começa outro romance (...) A vida de uma operária têxtil que é a filha de Madame Bovary, diz Renzi, esse tema me interessa mais do que a história da amante de Walter Benjamin". 

3) A França e o francês aparecem ao longo de toda a obra de Cornell - desde referências visuais até pequenos recortes de propagandas. Em Hotel Eden, de 1945, Cornell não só incorpora dois recortes em francês como posiciona, em destaque, um papagaio (uma referência ao papagaio de Flaubert em Un Coeur Simple? Cornell, com seu papagaio reproduzível e não-único, antecipa inclusive a investigação irônica de Julian Barnes: seu O papagaio de Flaubert inicia com a situação de dois museus defenderem a posse do verdadeiro papagaio; no fim, são mais de 150 os possíveis candidatos). Cornell pode ser flaubertiano também por outro viés: também ele se interessava pela coleta das ideias feitas, das bêtises, daquilo considerado de menor valor, o refugo da sociedade de consumo (que emoldurava em um trabalho de extremo rigor e detalhismo).   

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