sexta-feira, 8 de maio de 2020

Piazza Colonna


Quando Freud escreve sobre o romance de Jensen, Gradiva (ficção sobre um arqueólogo que fica fascinado por um baixo relevo visto em um museu e que, trabalhando a partir desse fascínio, produz um enigmático sonho no qual é transportado para Pompeia, logo antes da destruição provocada pelo Vesúvio), enfatiza a distância temporal que separa o sonho da cidade, ou seja, do homem que sonha no fim do século XIX e a cidade soterrada em 79 d. C. 

1) É perceptível em Freud certa ambivalência diante da cidade contemporânea, urbana, repleta de mensagens e estímulos técnicos. Em 22 de setembro de 1907, Freud escreve uma carta para sua família de Roma, na qual aparece como uma sorte de flâneur na capital italiana, mesclando registros acerca da arquitetura tradicional (a Piazza Colonna) e dos novos artifícios de entretenimento para as massas (anúncios, o bonde elétrico, vendedores de jornais, o cinematógrafo). 

2) “Uma das características notáveis dessa carta”, escreve Jonathan Crary (em seu livro Suspensões da percepção), “é como ela revela a transformação do status do observador, embora transmita um sentimento de modernização parcial e eternamente incompleta da experiência”; Freud “apresenta-nos uma cena urbana em que uma subjetividade individual e uma coletiva tomam forma em múltiplas imagens, sons, multidões, vetores, caminhos e informações, e sua carta registra uma tentativa particular de gerir e organizar cognitivamente esse campo sobrecarregado” (p. 358).

3) Parte da ficção do século XX circula ao redor dessa ambivalência diante das múltiplas mensagens da cidade - uma heterogeneidade de registros que não é mais apenas vertical e material (a metáfora arqueológica das camadas subterrâneas de Freud), mas também disseminada e fantasmática. É assim que surge a Londres de Sebald em Austerlitz (a caminhada do narrador e do protagonista pela cidade é um deslocamento que se também no tempo - um pouco como acontece também no romance Glosa, de Saer, que narra uma caminhada que dura 21 quarteirões de Santa Fe); a Paris de Vila-Matas em Doutor Pasavento (operando metonimicamente a partir do uso da Rue Vaneau); toda a noção de localidade compartilhada no tempo e no espaço na série O Bairro, de Gonçalo Tavares.

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