quarta-feira, 27 de julho de 2011

Deus e o Tempo

1) O que é "Deus"?
Ao ler Shahrastani, um comentador da tradição escatológica islâmica, Giorgio Agamben especula que Deus é o lugar no qual os homens pensam seus problemas decisivos. Logo, pensar Deus é pensar o terreno criado pelos homens para receber suas maiores inquietações. Isso poderia significar também que o pensamento sobre o Antigo, o Insondável e suas infindáveis manifestações é também um pensamento sobre o presente, sobre a forma com que utilizamos e processamos as imagens e metáforas do presente.
2) Deus é um lugar para pensar problemas decisivos: Agamben e Shahrastani não dão qualquer nome [ao menos não diretamente] a esses problemas, mas, quando o primeiro afirma, ainda no raciocínio da tradição escatológica islâmica, que toda criação deve levar em conta sua salvação [e, consequentemente, sua destruição], está levantando o problema do Tempo. E mais: o problema da instabilidade do Tempo, o problema da incongruência do Tempo. Il compito della salvezza precede quello della creazione, quasi che la sola legittimazione per fare e produrre fosse la capacità di redimere ciò che si è fatto e prodotto, escreve Agamben. Ou seja, o projeto da salvação está antes da criação - a destruição virtual, portanto, ou ainda, a ficção da destruição projetada, é o principal ingrediente da criação que sequer começou. Todos os tempos estão sobrepostos e acessíveis.
3) Esse é o tema de Borges: certamente o Tempo, mas também a Divindade [em seus distintos avatares] como plataforma privilegiada de especulação. Vai desde "Nova refutação do tempo" até as conferências de "Borges, oral" [especialmente aquela sobre a imortalidade], passando pelo livro sobre a Eternidade. Em 1951, um Borges conceitual inventou uma máquina de ler na qual partes heterogêneas da literatura universal funcionavam como profecias da obra de Kafka. A obra de Kafka, além do mais, desviaria nossa leitura desses textos até transformá-los em estranhas peças kafkianas. O mecanismo está regido por uma ideia que desdenha a identidade ou a pluralidade dos homens: cada escritor cria seus percursores e seu trabalho modifica nossa concepção do passado e do futuro. Todos os tempos estão sobrepostos e acessíveis.
4) Não é gratuito, portanto, que a argumentação de Agamben [o texto em questão é "Creazione e salvezza", que está em Nudità (2009)] comece justamente com as condições de emergência da palavra profética e as possibilidades de surgimento da figura do Profeta. O presente parece pouco propício para a emergência tanto da palavra quanto de seu portador, talvez por conta de um arraigado sentimento de exaustão, que percorre todas as esferas da experiência contemporânea [como um pornógrafo idoso que já não encontra serventia para seu desejo]. A chave está na destruição: pensar o gesto do movimento seguinte como se ele já estivesse [e está] fadado ao fracasso, ao insucesso [como fez, por exemplo, Duchamp, ao longo de toda sua vida].

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