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Se pensarmos nas relações possíveis entre Francis Bacon e Juan Carlos Onetti, por exemplo, veremos que é impossível determinar quem tem a precedência, a palavra ou a imagem. É fato que Onetti já morava em Madri no fim da década de 1970, quando a cidade recebeu uma ampla exposição das obras de Bacon, e é também fato que Onetti tinha uma intensa admiração pela pintura e pela arte em geral, é só lembrarmos aquela célebre história do roubo do desenho de Picasso para a capa de seu primeiro livro. Em Deixemos falar o vento, um de seus últimos livros, espécie de suma da obra toda de Onetti, onde encontramos trechos, citações, personagens, toda uma rede de auto-intertextualidade (um traço que é, de resto, bastante característico de Onetti), o narrador da primeira parte é um pintor, um pintor que percorre a praia em busca da onda perfeita, que era o motivo que buscava para pintar. Não se sabe se Onetti estava lá, na exposição de Bacon, mas é fato que admirava os herdeiros de Picasso e o próprio Picasso, e Bacon é, sem dúvida, um herdeiro de Picasso. Há uma visão em Deixemos falar o vento: o pintor vê um cão parado, olhando para o mar; uma forma indistinta que lembra um cão, mas que pode ser uma mulher dobrada sobre si, uma figura que compartilha do animal e do humano. Ainda mais interessante e revelador me parece as constantes referências que o pintor-narrador, no livro de Onetti, faz às pinturas do Papa que estão na Igreja de Santa Maria, a cidade de Onetti, a Yoknapatawpha de Onetti, a cidade que é queimada em Deixemos falar o vento e que ressurge das cinzas em Quando já não importa, o livro póstumo. O pintor-narrador está obcecado por esse retrato do Papa – assim como Francis Bacon estava obcecado com a figura do Papa Inocêncio X pintado por Velázquez. E Bacon estava obcecado por uma pintura que nunca viu, estava obcecado pela imagem de uma imagem, da mesma forma que Onetti: tergiversando em torno de uma imagem que é puro fantasma. Os trípticos de Bacon também estão na escritura de Onetti, seja nos trechos que se repetem de livro para livro, seja na reiteração de uma mesma figura, dentro de um mesmo livro, com distância de poucas páginas entre uma aparição e outra. Sem mencionar os corpos solitários, fora de foco, sempre em suspensão, sempre em movimentação suspeita, sempre deixando para trás a sensação de que, a cada representação na tela (ou na página), o corpo fica, progressivamente, mais fraco.
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