Philip Roth, Por que escrever? Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013), trad. Jorio Dauster, Companhia das Letras, 2022:
1) "Ao escrever sobre Kafka, contemplo sua fotografia aos quarenta anos (minha idade) — estamos em 1924, um ano tão doce e cheio de esperança quanto ele possa ter vivido como adulto, e também o ano em que morreu. O rosto é afilado e esquelético, como o de um animal escavador; maçãs do rosto proeminentes, evidenciadas ainda mais pela falta de costeletas; orelhas com o formato e o ângulo de asas de anjo; um olhar intenso, quase desumano, de uma serenidade assustada" (p. 14).
2) "Henderson, o rei da chuva, de Saul Bellow, é um livro dedicado a celebrar a regeneração do coração, do sangue e da saúde em geral de seu protagonista. Entretanto, considero de alguma importância que a regeneração de Henderson ocorra num mundo que é totalmente imaginado, que não existe na realidade. A África que Henderson visita não é a África tumultuada dos jornais e dos debates das Nações Unidas. Lá não há nada que lembre os distúrbios de rua, os levantes nacionalistas, o apartheid. Mas por que haveria? Há o mundo, e também há o ser individual. E o ser individual, quando o escritor lhe devota toda sua atenção e talento, revela ser uma coisa notável" (p. 55).
3) "Sob o domínio do comunismo soviético, alguns dos escritores mais originais da Europa Oriental que li em inglês se posicionaram de modo similar - Tadeusz Konwicki, Danilo Kiš e Kundera, por exemplo, para mencionar apenas três que têm nomes com K - rastejaram de baixo da barata de Kafka para nos dizer que não há anjos não contaminados, que o mal está tanto dentro como fora. Não obstante, esse tipo de autoflagelação, malgrado suas ironias e nuances, não pode estar livre de certo elemento de culpa, do hábito moral de localizar a fonte do mal no sistema, mesmo ao examinar como esse sistema nos contamina" (p. 304)
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