sexta-feira, 25 de março de 2022

Cruzeiro do Sul



1) Em 2020, Claudio Magris publica o livro Croce del Sud, no qual descreve e comenta três vidas "reais e improváveis" perdidas no fim do sul do mundo: o croata de ascendência eslovena Janez Benigar; o advogado francês Orélie-Antoine de Tounens; a freira italiana Angela Vallese. Essa "croce" do título é a Cruzeiro do Sul, constelação presente nas bandeiras de Brasil, Austrália e Nova Zelândia, marca cósmica da profundidade geográfica, senha que permite a Magris o deslocamento espaço-temporal em direção a esses "exploradores" do abismo sul-americano (o que faz pensar no esforço análogo de Coetzee ao falar, na Argentina, das "Literaturas del Sur": "Entre 2015 y 2018, la Cátedra Coetzee abrió espacios de intercambio entre autores, críticos literarios, investigadores y docentes de África, Australia y América Latina, así como de otras regiones del sur"). 

2) Benigar (1883-1950), Juan Benigar, "El cacique blanco", "El sabio que murió sentado", um dos maiores mitos da província de Neuquén, estudioso da cultura Mapuche, teve quinze filhos e produziu obras como a Gramática Araucana e o Vocabulario Histórico Araucano-Español. Orélie-Antoine (1825-1878) assinou dois decretos em 1860 nos quais se autodeclarava Rei de Araucânia e Patagônia; em 1862, é preso pelo governo chileno, julgado insano e extraditado para a França; em 1863 publica suas memórias, morrendo na pobreza em 1878, em solo francês. A freira Angela (1854-1914) faz parte de uma comitiva de evangelização que ruma em direção à Terra do Fogo em 1877, enfrentando gelo e ventania na travessia do Estreito de Magalhães, visitando a ilha Dawson e as Malvinas, de onde escreve uma série de cartas aos pais na Itália. 

3) Magris faz uso da forma breve para apreender um conjunto de vidas - o que permite a inclusão de seu projeto naquela linha associativa que abarca Vidas dos artistas de Vasari, Vidas imaginárias, de Marcel Schwob, História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, as Vidas minúsculas, de Pierre Michon, e assim por diante (sendo possível relembrar também o comentário de Deleuze sobre as "vidas infames" de Foucault: ele “concebe uma infâmia de raridade ou escassez, a de homens insignificantes, obscuros e simples, que devem apenas a processos, a relatórios policiais, o fato de aparecerem por um instante à luz. É uma concepção próxima de Tchékhov"). 

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