quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O corte vertical

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Muitos anos atrás, encontrei um pequeno livro de capa preta que sobreviveu quieto e hoje volta à tona. Me chamou a atenção o autor, conhecido, e o desenho na capa: uma cobra dobrada sobre si, com uma segunda cabeça no lugar do rabo. Levei para casa e li em dois toques – minhas aulas (geralmente superficiais e insípidas) eram de manhã, o que me deixava o resto do dia livre para fazer coisas como debulhar um livro de antropologia e depois ir comer uma tigela de açaí na esquina. A quantidade de pessoas tão desocupadas quanto eu pelas ruas era assombrosa. O livro era Mito e significado, de Claude Lévi-Strauss, em uma edição já esgotada, de uma coleção célebre, das Edições 70, de Portugal.
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O livro é a compilação de algumas palestras que Lévi-Strauss transmitiu por rádio em 1977. A terceira palestra foi intitulada Lábios rachados e Gêmeos: a análise de um mito, é dela que eu melhor me lembro, que mais me ficou na cabeça. Grosso modo, informa que a ferida do lábio rachado (o lábio leporino) é o indício de uma separação que não foi completa, ou seja, nasceriam gêmeos e o processo ficou incompleto. O sujeito que carrega essa marca é perigoso, habita um entre-lugar: nem sagrado, nem profano, bem e mal, simultaneamente. Uma metamorfose perpétua, de certa forma. Além de ser anatomicamente diferente, e já por isso separado, há um parentesco assustador, para o grupo, com a divindade maior dessas tribos: a lebre.

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Há uma categoria que se anuncia e que monta essas imagens: simetria. Dentro disso, uma diferenciação que se impõe: verticalidade e horizontalidade. Se lembrarmos a crítica que Silviano Santiago faz, em “A ameaça do lobisomem”, ao Manual de zoologia fantástica de Borges, aparece bem claro a omissão para com as metamorfoses que invadem o homem – sobretudo aquelas que envolvem a cisão sobre a carne, sobretudo aquelas que não estão apaziguadas, que não foram intensamente buriladas pela tradição, pela biblioteca. O monstro mitológico é sempre cortado na horizontal: do pescoço para cima é touro, da cintura para baixo é bode, da cintura para cima é homem etc. O corte vertical marca a bestialidade produtiva, assustadora, estranha, do mesmo que se torna outro.
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Vida e época de Michael K., de J.M. Coetzee, é sobre um negro pobre, com um desvio mental que nunca fica bem claro (não sabemos se ele é esquizofrênico, autista ou se sofre de alguma espécie de retardo mental) vivendo em uma África do Sul deslocada no tempo, transportando o cadáver de sua mãe em um carrinho de mão, rumando para um lugar que nunca chega. A cena de abertura do livro é forte como poucas: a parteira retira Michael pela vagina de sua mãe e observa o lábio fendido; sem hesitar, coloca um dos dedos dentro da boca da criança e pensa, aliviada, “dos males, o menor”: a criança nasceu com o palato fechado.
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Michael K. é uma batalha contra K., o Agrimensor, o Tuberculoso, quem quer que seja, Kafka. Coetzee oscila permanentemente entre Beckett e Kafka. Quais são os livros que a amante encontra na estante de John, lá na década de 70, lá nos interstícios mais escondidos de Summertime, ali onde o autor imaginou que estaríamos distraídos, para então colocar, sub-repticiamente, algumas balizas de influência? Ela encontra, além de alguns dicionários, Kafka e Beckett, é evidente. Michael K. está marcado de infâmia, como Joseph K., e nunca chega na cidade onde sua mãe quer ser enterrada, nunca chega ao Castelo.
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Em seu último livro, Nudità, de 2009, Giorgio Agamben publica um ensaio sobre Kafka intitulado justamente K. – Roberto Calasso tem um livro sobre Kafka com o mesmo título. Agamben revisa O processo e Na colônia penal sob a ótica do Direito Romano clássico – que prescrevia como pena àqueles culpados de calúnia uma marca no rosto, uma letra K a ferro quente, K de Kalumniator. Marcado na fronte, separado, monstruoso como também o é Michael K. com seu lábio fendido.
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Essas marcas levam a uma história, silenciada, mas presente. Diante dessas imagens armam-se relatos. Para fechar o percurso, trago as manchas de tinta simétricas de Rorschach, aquelas do Teste de Rorschach – borrões cortados na vertical, imagens dobradas sobre si, que solicitam leitura e intervenção, manchas na história, como Joseph K., Michael K., carnes feridas, alteridades radicais, oscilando na vertigem, na elipse crepuscular do presente.
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