quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Aventura



1) No sexto capítulo de Mimesis, "A saída do cavaleiro cortês", Auerbach - com um único gesto - aproxima e distancia as canções de gesta e os romances de cavalaria utilizando dois significantes: para as primeiras, a palavra é vasselage; para os segundos, a palavra é corteisie. Essa primeira palavra, intensamente utilizada nas canções de gesta (é a cristalização de todo um contexto social), vai aos poucos desaparecendo: Chrétien de Troyes a utiliza no Erec três vezes, em Cligès e Lancelote uma única vez e depois "não mais aparece", como indica Auerbach. A segunda palavra não é mais a cristalização de um contexto social, mas de uma propriedade idealizada (fantasmática) que é perseguida, desejada - a "cortesia" é um processo em permanente desenvolvimento.

2) O ideal da "cortesia" é pessoal e absoluto, escreve Auerbach; a vasselage estava ligada ao nascimento, a corteisie está ligada a uma "educação", uma "provação constante", um sistema de "verificação" que é mantido pela "forma peculiar e estranha de acontecimento" criada pela cultura cortesã, a "aventura": a aventura é a "genuína vocação" daqueles envolvidos no ideal cortês. É esse distanciamento do mundo real que permite a sobrevivência histórica de seus elementos: alcançará, 300 anos depois, Cervantes e o Dom Quixote, "que interpretou o problema da maneira mais perfeita", escreve Auerbach  (no sexto capítulo Auerbach antecipa um personagem e um texto que só reaparecerão no capítulo 14, "A Dulcinéia Encantada").

3) Um ponto sutil e muito importante levantado por Auerbach, em poucas palavras: a "evasão para o fantástico" apresentada por Cervantes com o Quixote é uma intensificação de algo que já se notava no próprio romance de cavalaria 300 anos antes (ou seja, nem tudo se resolve pela chave da paródia quando se trata da relação do Quixote com os romances de cavalaria). A diferença é que o Quixote encontra ao seu redor uma série de obstáculos à idealização; o mundo ficcional de Chrétien de Troyes, por sua vez, é deliberadamente purificado dos obstáculos, uma "criação estética absoluta", nas palavras de Auerbach (sintoma de uma "crise funcional da classe feudal", que começa a ver despontar no horizonte a burguesia). 

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