terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A cidade natal

"A cidade natal não é torre de igreja e não é praça com fonte, nem comércio florescente ou ofício; a cidade natal é um portão onde tivemos um pensamento pela primeira vez, um banco em que estivemos sentados e não compreendemos alguma coisa, um instante sob a água corrente quando numa vertigem a lembrança nos leva a uma existência antiga; um pedregulho liso lapidado que encontramos na velha gaveta da escrivaninha e com o qual já não sabemos o que pretendíamos; o chapéu do professor de religião pontilhado por uma macha marrom, a ansiedade antes de uma aula de história, certas brincadeiras que ninguém entende e relutamos em explicar, uma mentira com consequências sonhadas durante a vida inteira, um objeto nas mãos de alguém, um som inesquecível que ouvimos de noite pela janela aberta, a luz de um quarto, duas franjas na barra de uma cortina" (Sándor Márai, Rebeldes, trad. Paulo Schiller, Cia das Letras, 2004, p. 56).
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"O mundo não passa de um perene balanço: todas as coisas se movimentam incessantemente, a Terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito; tanto com o movimento geral como com o seu. A própria constância não é outra coisa além de um movimento mais lânguido. Não posso ter certeza de meu objeto: ele segue confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Pego-o neste ponto, como ele é, no instante em que me interesso por ele. Não pinto o ser, pinto a passagem: não a passagem de uma idade à outra, ou como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia em dia, de minuto em minuto. Devo adaptar minha história ao momento" (Montaigne, "Sobre o arrependimento", Os ensaios: uma seleção, trad. Rosa Freire d'Aguiar, Penguin-Companhia, 2010, p. 346). 

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