domingo, 18 de fevereiro de 2018

Sarmiento, viajante

"Para um julgamento comparativo das duas culturas políticas [latino-americana e estadunidense] no despertar da nacionalidade dificilmente encontraremos algo melhor do que as Viagens pelos Estados Unidos de Domingo Sarmiento (1811-1888), juntamente com o Facundo, sua obra mais conhecida. A interpretação superficial do Facundo (1845) é de que apresenta uma terra dividida pela civilização incubada nas cidades e a barbárie imperante nos pampas, cujo corolário político é o republicanismo contra a tirania, personificados pelo homem de negócios de casaca e o gaúcho ou o caudilho selvagem. A visão de Sarmiento, no entanto, era muito mais rica. Dificilmente se podia esperar que os termos de sua dicotomia, inspirados por Sir Walter Scott e James Fenimore Cooper, correspondessem a seus impulsos interiores como argentino. O cenário que ele descreve recorda a Arábia ou as planícies tártaras onde duas 'civilizações' se enfrentam: uma cultura 'feudal' do século XII ainda em infância, e outra que representa as realizações contemporâneas europeias. 
Dodge City, 1939, Michael Curtiz
Sarmiento aprofunda a comparação, contrastando a moderna Buenos Aires, alimentada por Bentham, Rousseau e Montesquieu, com Córdoba, refúgio dos espanhóis fugitivos, catacumba do neo-escolasticismo aristotélico do século XVI. Apesar de sua preferência programática pelo estadista utópico Rivadavia frente ao 'selvagem' caudilho Rosas, até seus contemporâneos reconheceram a identificação de Sarmiento com o tipo de caudilho telúrico, com o Tamerlão ou Maomé americano de gênio, paixão e intelecto nativos. Em alguns momentos Sarmiento ultrapassa suas explícitas dicotomias e se eleva a uma linguagem hegeliana ao falar da infusão da 'inteligência' na 'matéria' crua da América do Sul. Isso significa que, nos anos críticos que se seguiram à independência, Sarmiento havia acompanhado a transição ocidental do enciclopedismo para o historicismo. 
Foi só depois de escrever Facundo que Sarmiento viajou pela primeira vez para a Europa e os Estados Unidos. Sua viagem permitiu-lhe aclarar confusões anteriores e deslocar a antinomia civilização-barbárie para bases políticas agora percebidas com mais clareza. Sua primeira chave para a compreensão dos Estados Unidos foi a mobilidade espacial de seus habitantes. Se Deus chamasse o mundo a prestar contas, supunha Sarmiento, surpreenderia em marcha, como as formigas, dois terços da população norte-americana."

(Richard Morse, O espelho de Próspero: culturas e ideias nas Américas. trad. Paulo Neves, Cia das Letras, 1988, p. 83-84).

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