domingo, 4 de março de 2018

Pinochet e o Quixote

Em suas "Notas para uma definição do leitor ideal", um breve artigo reunido hoje no livro À mesa com o Chapeleiro Maluco, Alberto Manguel escreve: "Pinochet, que proibiu Dom Quixote por pensar que esse livro incitava à desobediência civil, foi seu leitor ideal". O artigo de Manguel é todo feito de frases breves, tentativas de definição dessa entidade provisória e informe chamada "leitor ideal". Entre outras: "O leitor ideal é o personagem principal de um romance"; "Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal"; "O leitor ideal faz proselitismo"; "O leitor ideal é volúvel e não sente culpa disso"; "O leitor ideal não liga para os gêneros"; "O leitor ideal lê toda literatura como se fosse anônima"; e assim por diante.
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1) Essas definições de Manguel funcionam como uma suma de seus interesses como leitor e escritor, pois é possível reconhecer nelas indícios da presença dos vários autores que Manguel comenta em seus próprios livros. Em primeiro lugar, Cervantes, o centro do cânone, como mostra a primeira frase que separei. Mas não apenas Cervantes e o Quixote, e sim as estratégias de leitura do Quixote desde seu surgimento - e aqui está um tema vindo diretamente de Borges (a própria menção a Pinochet no centro desse tema borgiano é digno de nota, dado o polêmico encontro do cego e do ditador no Chile de 1976).
2) De resto, a própria extravagância de unir Cervantes, Borges e Pinochet em uma mesma frase remete àquilo que a literatura latino-americana tem de melhor: o fantástico que emerge do absurdo cotidiano, as liberdades tomadas com e a partir da história, a tensa familiaridade da exceção brutal e da esperança cínica. É evidente que a ideia de Pinochet como leitor do Quixote nos leva diretamente ao universo de Roberto Bolaño, mais especificamente ao Nocturno de Chile, que mostra Pinochet e a cúpula da Junta Militar aprendendo os rudimentos do marxismo com o padre Lacroix. 
3) Recuando um pouco mais, ainda tendo em mente a literatura latino-americana e suas liberdades tomadas com e a partir da história, e mantendo também em mente a cena de Pinochet como censor do Quixote, podemos encontrar Respiração artificial, de Piglia. O romance de Piglia é, entre outras coisas, sobre os desvios extremos da leitura e a diligência igualmente extrema dos censores diante da escrita. Em Respiração artificial, assim como na frase de Manguel, o censor é o leitor ideal (porque delira, se deixa afundar no abismo de sentido). 

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