sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Portas abertas, 3

1) Em Portas abertas, Sciascia apresenta uma sala de tribunal da década de 1930 que ainda carrega, por baixo das pinturas das paredes, as mensagens dos condenados pela Inquisição. Sem necessariamente colocar em questão a "tragédia" ou a "farsa" (não me parece importar a Sciascia tal categorização, tendo em vista o fascismo e a Inquisição), essa imagem do palimpsesto em Sciascia lembra a abertura do 18 de brumário de Marx:
Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. (Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, trad. Nélio Schneider, Boitempo, 2011, p. 25).
E linhas depois Marx fala dos "espíritos do passado" que emprestam seus nomes aos revolucionários, fala das "ressurreições de mortos" protagonizadas pelas revoluções, fala do "fantasma da antiga revolução" e da "máscara mortuária de Napoleão". O próprio Napoleão já havia surgido no relato de Sciascia - quando o juiz fala de sua percepção anedótica da história - e é precisamente na continuação desse diálogo que um dos procuradores fala ao juiz, já muito tempo depois do caso encerrado:
Dentro de alguns meses vou-me embora; deixo este escritório, esta profissão. Mas estou me acostumando: estou começando a pensar coisas nas quais nunca pensei antes. Por exemplo: que sempre fui um morto que sepultava outros mortos. E aliás: todos nós somos, neste nosso ofício de acusar e julgar. E mais: me pergunto se, na função de mortos que sepultam mortos, temos realmente o direito de sepultar mortos por pena capital. (Sciascia, Portas abertas, trad. Mário Fondelli, Rocco, p. 83).
(Nesse ponto específico tratado por Sciascia - a questão da pena capital -, vale mencionar que em um de seus últimos seminários, Jacques Derrida estava se ocupando desse debate e usando como referência de trabalho aquele mesmo autor-base de Sciascia, Montaigne (é possível relembrar também a discussão de Derrida a respeito da pena capital contra Blanchot, o "instante de sua morte")).
2) Essa articulação entre a literatura e a "ressurreição dos mortos" leva em direção a outro livro escrito sob o signo napoleônico, O coronel Chabert, de Balzac. Apesar de vivo, já em sua primeira aparição surge "a sensação desbotada dessa fisionomia cadavérica", como escreve Balzac. O próprio Chabert exclama, ironicamente:
Estive enterrado sob os mortos, mas agora estou enterrado sob os vivos, sob certidões, sob fatos, sob a sociedade inteira, que quer me fazer voltar para debaixo da terra! (Balzac, O coronel Chabert, trad. Eduardo Brandão, Cia das Letras, 2012, p. 28).
3) São três elementos que ligam a novela de Sciascia, Portas abertas, à novela de Balzac, O coronel Chabert: em primeiro lugar, a escrita infame da Inquisição que brota das paredes da "casa da Justiça"; em segundo lugar, Napoleão como exemplo da história anedótica e menor; em terceiro, o trabalho do advogado ligado à morte, à manutenção daquilo que deve ser limpo e mantido distante da sociedade (uma espécie de sobrevivência do antigo mito dos "devoradores de pecados"). O advogado que tentou garantir os direitos de Chabert reflete de forma semelhante àquele advogado de Sciascia, já na última página da novela de Balzac, muitos anos depois:
Sabe, meu caro, que em nossa sociedade existem três homens, o padre, o médico e o homem de lei, que não podem ter estima pelo mundo? Eles usam trajes negros, talvez por guardarem o luto de todas as virtudes, de todas as ilusões. (O coronel Chabert, p. 82).
Poucas linhas adiante ele completa: "nossos escritórios são esgotos que não se podem limpar". Talvez isso possa aprofundar a visão do leitor em direção ao universo de Sciascia, tão ligado à lei, ao processo e à justiça dúbia, sempre maleável, suscetível aos desvios da história. Para Sciascia, no entanto, ao contrário de Balzac, não são o padre, o médico e o homem de lei que guardam o luto "de todas as ilusões" - talvez o filósofo, talvez o romancista.  

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