sábado, 26 de dezembro de 2015

Portas abertas, 4

1) Um tema forte em Sciascia: a relatividade das leis, dos sentimentos, das pessoas. Aquilo que é legítimo e sagrado para alguns será abjeto e criminoso para outros (a Inquisição, o fascismo). Na novela Majorana desapareceu, de 1975, Sciascia mais uma vez usa um caso real, documentado pela imprensa, para investigar esse tema da variabilidade das certezas humanas. Nunca se descobre a razão do desaparecimento de Majorana - que teria fabricado o próprio suicídio -, mas Sciascia especula que pode ter alguma relação com seu trabalho como físico e matemático e a precoce consciência que Majorana teria da possibilidade de construção da bomba atômica.
2) O percurso especulativo que Sciascia realiza para tentar explicar, sutilmente, o desaparecimento de Majorana segue os extremos típicos dessa relatividade: da consciência da destruição mais completa e atroz em direção ao silêncio mais radical; do estudo das consequências mais amplas em direção ao recolhimento mais íntimo. O físico Majorana pode ter se transformado em monge, recluso em um convento:
Empreendemos esta viagem, entramos nesta cidadela dos cartuxos, correndo atrás de um sutil, atormentador rastro de Ettore Majorana. Uma vez, em Palermo, estávamos falando do seu misterioso desaparecimento com Vittorio Nisticò, diretor do jornal L'ora. De repente, Nisticò lembrou-se claramente de uma coisa: muito jovem, nos anos da guerra ou do imediato pós-guerra, em suma, por volta de 1945, visitara em companhia de uma amigo um convento de cartuxos. e a certa altura da visita foram confidencialmente informados por um dos "irmãos" de que entre os "padres", no convento, havia um grande cientista. (Sciascia, Majorana desapareceu, trad. Mário Fondelli, Rocco, 1991, p. 74-75).
3) Majorana foi contemporâneo de Wittgenstein ou, mais precisamente, foi contemporâneo do segundo Wittgenstein, aquele que retorna à filosofia em fins da década de 1920 depois de alguns anos como professor de crianças no interior da Áustria. Majorana desaparece em 1938, ano em que Wittgenstein torna-se cidadão inglês por conta das leis raciais de Hitler. Como leitor, Wittgenstein às vezes se dividia entre Tolstói (o que nos leva diretamente à articulação entre santidade e mundanidade) e livros de detetives, pulp fiction como aquela de Norbert Davis (o que nos leva ao tipo de relato que interessava ao próprio Sciascia). Pois é o próprio Wittgenstein quem vai reunir a Inquisição, o fascismo e as novas formas de destruição em massa em um único comentário, reunido, junto com tantos outros, por seus alunos e seguidores em uma publicação póstuma:
Pense um pouco no que deve significar o fato de o governo de um país ser controlado por um bando de gangsters [Wittgenstein está falando de Hitler e da Alemanha]. A época das trevas está retornando. Não me surpreenderia, Drury, se você e eu tivéssemos de viver para assistir horrores como aqueles que consistem em queimar vivas pessoas consideradas feiticeiras. (Recollections of Wittgenstein, Org. R. Rhees, Oxford, 1984, p. 152 - citado em Christiane Chauviré, Wittgenstein, trad. Maria Luiza Borges, Zahar, 1991, p. 148).

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