"Napoleão emancipando os judeus", 1806 |
1) Ainda em Portas abertas, ainda na conversa entre o juiz e o jurado, o primeiro faz mais um comentário que pode ser lido como uma definição possível da poética de Sciascia (e também de Sebald ou Patrick Modiano): "Muitas vezes eu gosto de ver a história através de um detalhe, de algo que pode parecer insignificante, uma figura na sombra, uma anedota... Napoleão entra numa sinagoga, olha para os judeus que rezam de cócoras e diz: 'Senhores, com o traseiro ninguém jamais conseguiu fundar um Estado'; e lá vêm as bombas nos mercados de Tel Aviv, uma questão sem fim... Aquela apreensão por notícias que a guerra da Espanha relegava às margens o terrorismo dos judeus que queria fundar um Estado, a maneira com a qual os ingleses administravam o seu mandado na Palestina, parecia a Simone e ao juiz totalmente descabida e, ao torná-la assunto de conversa, um tanto obsessiva. Continuaram conversando, com leveza, com brilho, da França, de alguns escritores, de alguns livros. E do fascismo. Mas falando daquele jeito, o fascismo parecia uma coisa distante, como que sonhada num mapa imaginário da imbecilidade humana" (Portas abertas, p. 78-79, grifo meu).
2) Sciascia aproxima a anedota de Napoleão na sinagoga (provavelmente nos primeiros anos do século XIX) das tentativas de fundação de um Estado com uso da força por volta de 1936, enxergando talvez uma correspondência, um eco (apenas insinuado, indefinido). Por um viés psicanalítico, essa é também a postura de Zizek: o chiste, a anedota, a piada são eventos de linguagem carregados de conteúdo recalcado, "detalhes insignificantes" que podem, no entanto, revelar refrações atípicas no percurso histórico. Em Menos que nada, Zizek escreve: "Todos conhecemos a piada sobre o enigma de quem teria escrito as peças de Shakespeare: 'Não William Shakespeare, mas alguém com o mesmo nome'. É isso que Lacan quer dizer com 'sujeito descentrado', é assim que o sujeito lida com o nome que fixa sua identidade simbólica: John Smith (sempre, por definição) não é John Smith, mas alguém com o mesmo nome. Como a Julieta de Shakespeare já sabia, nunca sou 'aquele nome' - o único John Smith que acredita ser realmente John Smith é o psicótico" (Zizek, Less than nothing, Verso, 2012, p. 422).
3) Antonio Tabucchi articula a anedota e a perda do nome próprio em um personagem, Pereira, e seu livro, Afirma Pereira. Também Pereira vive o fascismo na década de 1930, como o juiz e o jurado de Sciascia em Portas abertas (e são tantos que vivem o fascismo nas páginas de Sciascia), e o romance de Tabucchi tenta dar conta justamente do percurso que leva Pereira de uma condição de "sujeito centrado" a uma condição de "sujeito descentrado". O desaparecimento de Pereira no final do romance, sua progressiva "formação política" diante do fascismo, se dá no momento em que se pode responder à pergunta Quem afirma? com a fórmula: Não Pereira, mas alguém com o mesmo nome. Sciascia também vai encontrar esse tema em seu livro O teatro da memória, sobre um caso italiano verídico de impostura/personificação/reivindicação de identidade.
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