terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Susan Barton


1) Ainda pensando na repercussão da obra de Beckett nas ideias de Foucault sobre a autoria (e, de forma mais ampla, sobre "os princípios éticos fundamentais da escritura contemporânea", como escreve Foucault na conferência sobre o autor), e o uso que Foucault faz da "presença" de Beckett através das aspas, cabe resgatar o exemplo de Coetzee, que deriva boa parte de sua poética de Beckett (a tese de doutorado de Coetzee, defendida em 1969, foi uma "computer-aided stylistic analysis of Samuel Beckett's English prose"). 

2) Foe, o romance que Coetzee lança em 1986, começa com o sinal gráfico das aspas - abertura para a palavra do outro e, ao mesmo tempo, marca da absorção do outro pelo mesmo. É difícil saber quem está falando a partir dessas aspas - e mais difícil ainda determinar quem abre as aspas, quem chama o outro (que, no caso de Foe, é "outra", Susan Barton, mulher, inglesa). A inserção de Susan na narrativa, com o uso das aspas, faz surgir ao menos duas outras direções do discurso: alguém que a cita e alguém que recebe suas palavras (são duas cenas distantes no tempo que são sobrepostas com o uso das aspas: o momento em que se transcreve as palavras de Susan e o momento no qual ela dirige suas palavras a alguém).

3) Só muito adiante no romance de Coetzee que se revela parte desse endereçamento - Susan está falando com Daniel Foe, o futuro Daniel Defoe autor de Robinson Crusoe. Susan quer convencer Daniel a escrever sua história de náufraga, e a segunda parte do romance será dedicada a esse contato - até que o contato é interrompido pelo escritor, que some, fazendo com que Susan tenha que continuar seu relato de forma restrita, com um diário, ainda que o destinatário continue sendo o autor (as aspas não aparecem mais, e o efeito dessa parte final é potencializado justamente pelo uso das aspas na abertura do romance). 

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