segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Para ninguém


1) Na célebre conferência de Foucault - O que é um autor? -, dada em fevereiro de 1969 na Société française de Philosophie, está posta desde o início não só a relação entre literatura e filosofia, mas a permanente tensão entre o dito e o escrito, o visual e o auditivo. Foucault cita Beckett sem citar seu nome, "fala" a citação sem indicar de qualquer forma as aspas que, graficamente, indicam a citação, a sobreposição da voz do filósofo à frase do escritor (Que importa quem fala?, é o que se escuta falar Foucault - ou melhor, Qu’importe qui parle?, com as aspas aparecendo na versão escrita, sem que o nome de Beckett seja mencionado).

2) A frase de Beckett está em um dos textos esparsos reunidos no volume Nouvelles et textes pour rien, lançado pela Minuit em 1958. A versão francesa do livro traz a novela L'Expulsé, escrita em francês em 1946 e publicada na revista Fontaine (número 57, dez.1946-jan.1947); a novela Le Calmant, da mesma época; e também a novela La Fin, de 1945, publicada anteriormente em uma versão mutilada e com outro título, Suite (saiu no número 10, julho de 1946, da revista Les Temps Modernes). A segunda parte do livro - Textes pour rien, de onde vem a frase usada por Foucault - contém treze breves textos escritos por Beckett em francês em 1950 (alguns publicados na revista Les Lettres Nouvelles, em maio de 1953, alguns publicados na revista Monde Nouveau, maio-junho de 1955).

3) Já adiante na conferência, bem depois da abertura na qual as aspas não aparecem, Foucault retorna à frase de Beckett, mencionando seu nome e ampliando a própria frase, incorporando sua segunda parte: Le thème dont je voudrais partir, j'en emprunte la formulation à Beckett: "Qu’importe qui parle, quelqu’un a dit qu’importe qui parle" Dans cette indifférence, je crois qu’il faut reconnaître un des principes éthiques fondamentaux de l’écriture contemporaine. A abertura da conferência é a performance da reflexão que se coloca - um nome é escondido, mas permanece evocado em suas marcas, até ser resgatado - numa espécie de ritornelo, como coloca Deleuze - e expandido, posicionado como senha que dá acesso "a um dos princípios éticos fundamentais da escritura contemporânea".  

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