terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

O conceito de ficção


1) Em seu célebre ensaio sobre "o conceito de ficção", Saer inicia a argumentação a partir de um exemplo canônico (exemplo central para sua obra e sua poética, mas central também para a literatura ocidental do século XX, e o próprio exemplo mostra como Saer está em permanente - e tenso - diálogo com as principais tendências do desenvolvimento da narrativa/ficção/romance especialmente na segunda metade do século XX): James Joyce; ou ainda, a figura de Joyce, sua biografia, sua repercussão como personagem (Saer parte de dois biógrafos de Joyce, Gorman e Ellmann, separando por fim uma seção do trabalho do último, 1932-1935).  

2) A escolha do exemplo também vem da convivência de Saer com a obra e o pensamento de Borges (que será rapidamente evocado adiante no ensaio precisamente por conta do livro Ficções), tradutor e admirador constante de Joyce. Mas também a construção argumentativa de Saer evoca Borges: o uso do advérbio quando escreve que, de um biógrafo a outro, "el progreso principal es únicamente estilístico"; ou ainda quando diz que a "veracidade" na biografia "no es otra cosa que el supuesto retórico de un género literario", uma convenção como "las tres unidades de la tragedia clásica, o el desenmascaramiento del asesino en las últimas páginas de la novela policial" (um exemplo de Borges que vale pelo todo, do ensaio "As versões homéricas" (1932): "El concepto de texto definitivo no corresponde sino a la religión o al cansancio"). 

3) Essa frase de Borges não é citada por Saer, mas sua estrutura funciona como uma espécie de base invisível para a reflexão de Saer precisamente sobre "o conceito de ficção" (já que sua conclusão é que não há conceito fixo, prévio, trans-histórico: assim como o conceito de texto definitivo, também o conceito de ficção diz respeito apenas à religião, ao cansaço, ao positivismo, ao essencialismo). Ao confrontar Borges e Umberto Eco em seu ensaio (apontando a superficialidade do segundo), Saer afirma que Borges não toma "falso" e "verdadeiro" como opostos, e sim "como conceptos problemáticos que encarnan la principal razón de ser de la ficción". A ficção oscila entre os dois polos tensionados, absorvendo parte de suas características, engendrando híbridos experimentais.  

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