domingo, 7 de abril de 2013

Outubro de 1977, 1

Natureza-morta com cerâmica e tamancos, 1884
1) São oito os quadros pintados por van Gogh ao longo da década de 1880, informa Meyer Schapiro. Os tamancos pertenem ao trabalhador do campo, sua utilidade está dada, são observados à distância - mas as botas e os sapatos, continua Schapiro, com a perspectiva enviesada, com a composição desarticulada, com as pinceladas densas, esses são de van Gogh. Schapiro rastreia cartas e testemunhos que indicam que van Gogh comprou as botas num mercado de pulgas, que usou as botas, que se identificou com elas e que, em momento de extrema privação, as tomou como modelo.
2) Além disso, os sapatos surrados são a imagem do artista como caminhante, como errante e como peregrino (Francis Bacon também já pensou van Gogh como andarilho), como alguém em busca, como alguém que lida com algo que gira em torno a um vazio (o vazio do quem sou/fui/serei? - que Cortázar, por exemplo, traduz no toquei isso amanhã de O perseguidor).
3) Em Heidegger, os sapatos não levam a lugar nenhum - eles representam a fixidez dos pés na terra, a ligação do ser à técnica. Derrida escreve (La vérité en peinture): ainda que antagônicas, são duas projeções análogas, que levam os sapatos para além daquilo que eles fazem ver. Eis o cerne da desconstrução: desmontagem e dissecação das simetrias recalcadas entre contrários. Derrida argumenta que Schapiro e Heidegger compartilham um mesmo pressuposto arbitrário: aquele que determina que os sapatos de van Gogh são sempre pares. Quem pode garantir? Suplemento ao cerne da desconstrução: recuar à certeza mais evidente, mais banal (à moeda mais corrente), pois é ela que frequentemente sustenta as declarações mais duvidosas (cegueira e insight).

2 comentários:

  1. bom, mas SÃO mesmo sempre aos pares - não é um "pressuposto", é um dado de fato, que nada tem de arbitrário - é só ver as telas (aliás, dez, não oito, pinturas de tamancos, botas e sapatos entre 1881 e 1890) - de onde o derrida tirou a ideia de que seria um "pressuposto" dos comentadores, e ainda por cima arbitrário?

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    1. Pois é, Denise, o que o Derrida talvez queira indicar é que o pensamento filosófico/crítico sobre os quadros do van Gogh não precisa necessariamente seguir os fatos, seguir à risca o dado bruto, digamos assim. O que ele diz, por exemplo, é que mesmo Heidegger, cuja explanação era puramente teórica e que não tomou muitos cuidados com relação à informação precisa acerca dos quadros (fato utilizado bastante por Schapiro, aliás - e é do Schapiro, inclusive, a informação de que são 8 quadros (talvez a informação tenha mudado entre 1968 e a realização da biografia que você traduziu)), mesmo Heidegger, continua o Derrida, insiste em levar adiante o fato de seriam pares. Já que deixou de lado os pudores da informação, por que não deixar de lado também os pudores da simetria e da ordem?

      Então é mais ou menos por aí, o Derrida está interessado em provocar uma deformação da visão dos sapatos - algo que ele argumenta já estar no van Gogh, já estar nas solas pra cima, nas línguas obscenas dos sapatos para fora, dos cordões revirados, etc. Apreender a poética convulsiva do van Gogh como um estímulo ao pensamento, como um estímulo ao questionamento desses pressupostos arraigados da historiografia.

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