Paul Richer, 1913 |
1) A linguagem é um tema fundamental para Coetzee - mas no sentido de uma operatividade e de uma consciência da linguagem como mediação, como problematização da vida. Está em seus ensaios (sempre citando no original, sempre cotejando as traduções), está em sua ficção e em suas intervenções (daí sua proximidade com Beckett, sua leitura técnica e acadêmica de Beckett na década de 1960). Na primeira metade do Diário de um ano ruim, há um capítulo que se chama "Do uso do inglês". Na segunda metade do mesmo livro, um capítulo nomeado "Da língua-mãe", no qual escreve: "às vezes tenho a inquietante sensação de que aquele que eu escuto não é aquele que eu chamo de eu; é mais como se alguma outra pessoa (mas quem?) estivesse sendo imitada, acompanhada, até arremedada. Larvatus prodeo". E mais adiante: "talvez todas as línguas sejam línguas estrangeiras, estranhas ao nosso ser animal".
2) De novo o latim de Age of Iron - "larvatus prodeo", eu caminho mascarado, "título de uma obra breve de René Descartes, de 1618", afirma o tradutor José Rubens Siqueira em nota (curioso que a edição original não apresenta qualquer tipo de esclarecimento - Coetzee a pensou assim, uma interpolação inexplicada). Quanta História, densidade e erudição em duas palavras, como que jogadas no fim de um parágrafo. Porque essa máscara textual, essa citação, é já em si uma máscara, é um encobrimento já na ocasião de sua emergência - uma revelação que se dá coberta, escondida pela língua estrangeira, pela dificuldade de compreensão e leitura, que é justamente o que está em questão no comentário de Coetzee ("Da língua-mãe").
3) Larvata - "mascarada", do latim larva, larvae, máscara teatral, boneco, espantalho, espectro, demônio que se apodera das pessoas (Agamben, Infância e história). A interpolação de Coetzee em seu texto não só exemplifica a discussão (sou um estranho no uso da língua), como a presentifica, fazendo circular um fantasma, um espectro de anacronismo (o latim, a mensagem cifrada). O uso da língua como uma possessão - as línguas "estranhas ao nosso ser animal" -, como um boicote à natureza. A subversão parece já estar em Descartes, que transforma uma frase corriqueira (larvatus pro Deo, coberto, escondido diante de Deus) em uma frase de inquietude - larvatus prodeo, o eu dissimulado, capcioso (captio, pegar, armar, armadilha). Sutilezas profanatórias que eram muito apreciadas não apenas por Beckett, mas principalmente por James Joyce (os jesuítas, os rituais, as almas, os mortos, as línguas, as nações, Introibo ad altare Dei, etc).
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