Natureza-morta com cerâmica e tamancos, 1884 |
1) São oito os quadros pintados por van Gogh ao longo da década de 1880, informa Meyer Schapiro. Os tamancos pertenem ao trabalhador do campo, sua utilidade está dada, são observados à distância - mas as botas e os sapatos, continua Schapiro, com a perspectiva enviesada, com a composição desarticulada, com as pinceladas densas, esses são de van Gogh. Schapiro rastreia cartas e testemunhos que indicam que van Gogh comprou as botas num mercado de pulgas, que usou as botas, que se identificou com elas e que, em momento de extrema privação, as tomou como modelo.
2) Além disso, os sapatos surrados são a imagem do artista como caminhante, como errante e como peregrino (Francis Bacon também já pensou van Gogh como andarilho), como alguém em busca, como alguém que lida com algo que gira em torno a um vazio (o vazio do quem sou/fui/serei? - que Cortázar, por exemplo, traduz no toquei isso amanhã de O perseguidor).
3) Em Heidegger, os sapatos não levam a lugar nenhum - eles representam a fixidez dos pés na terra, a ligação do ser à técnica. Derrida escreve (La vérité en peinture): ainda que antagônicas, são duas projeções análogas, que levam os sapatos para além daquilo que eles fazem ver. Eis o cerne da desconstrução: desmontagem e dissecação das simetrias recalcadas entre contrários. Derrida argumenta que Schapiro e Heidegger compartilham um mesmo pressuposto arbitrário: aquele que determina que os sapatos de van Gogh são sempre pares. Quem pode garantir? Suplemento ao cerne da desconstrução: recuar à certeza mais evidente, mais banal (à moeda mais corrente), pois é ela que frequentemente sustenta as declarações mais duvidosas (cegueira e insight).
bom, mas SÃO mesmo sempre aos pares - não é um "pressuposto", é um dado de fato, que nada tem de arbitrário - é só ver as telas (aliás, dez, não oito, pinturas de tamancos, botas e sapatos entre 1881 e 1890) - de onde o derrida tirou a ideia de que seria um "pressuposto" dos comentadores, e ainda por cima arbitrário?
ResponderExcluirPois é, Denise, o que o Derrida talvez queira indicar é que o pensamento filosófico/crítico sobre os quadros do van Gogh não precisa necessariamente seguir os fatos, seguir à risca o dado bruto, digamos assim. O que ele diz, por exemplo, é que mesmo Heidegger, cuja explanação era puramente teórica e que não tomou muitos cuidados com relação à informação precisa acerca dos quadros (fato utilizado bastante por Schapiro, aliás - e é do Schapiro, inclusive, a informação de que são 8 quadros (talvez a informação tenha mudado entre 1968 e a realização da biografia que você traduziu)), mesmo Heidegger, continua o Derrida, insiste em levar adiante o fato de seriam pares. Já que deixou de lado os pudores da informação, por que não deixar de lado também os pudores da simetria e da ordem?
ExcluirEntão é mais ou menos por aí, o Derrida está interessado em provocar uma deformação da visão dos sapatos - algo que ele argumenta já estar no van Gogh, já estar nas solas pra cima, nas línguas obscenas dos sapatos para fora, dos cordões revirados, etc. Apreender a poética convulsiva do van Gogh como um estímulo ao pensamento, como um estímulo ao questionamento desses pressupostos arraigados da historiografia.