1) Já na abertura de Age of Iron (romance que Coetzee publica em 1990) são postos em confronto dois mundos: o doméstico, interno, e o das ruas, externo, brutalizado. Coetzee levanta um problema de comunicação, de tradução, de contato. Quando a mulher - a narradora, que está morrendo de câncer e escreve uma carta de despedida a sua filha - encontra o mendigo diante da sua garagem ("Havia um cheiro forte à sua volta: urina, vinho doce, roupa mofada e mais alguma coisa também. Sujeira"), reage com rispidez e o expulsa.
2) No dia seguinte, quando ele reaparece, a mulher lhe pergunta: "Como pode viver assim? Como consegue ficar jogado o dia todo sem fazer nada?". A resposta é inesperada: "Fez uma coisa que me chocou", escreve ela, "com um olhar direto, cuspiu um viscoso escarro grosso, amarelo, estriado pelo marrom do café, no concreto, junto aos meus pés". Cuspiu não em mim, ela pensa, "mas à minha frente, onde eu pudesse ver, inspecionar, pensar sobre isso". Era a sua palavra, escreve Coetzee, "o seu modo de falar", "uma palavra, inegável, de uma linguagem anterior à língua".
3) Depois de algumas semanas de convivência - que é o tempo de duração do romance -, quando o relato (a vida) da narradora já está chegando ao fim, o mendigo já tem nome - Vercueil - e já mora com ela em sua casa. Ela já lhe contou sua vida - professora de latim na universidade. "O que é latim", ele pergunta. Uma língua morta, uma língua falada pelos mortos, ela responde. "Você poderia falar um pouco?", ele pergunta. E ela recita Virgílio. Mais tarde, Vercueil volta e pede que ela recite novamente. Ela faz. Ele pergunta: "Podia me ensinar?". Ela responde: "Poderia lhe ter ensinado. Poderia lhe ter ensinado a maioria das coisas romanas. Não tenho certeza quanto às gregas. Ainda posso ensiná-lo, mas não haveria tempo para tanta coisa". De um ponto ao outro: da "linguagem anterior à língua" até "uma língua falada pelos mortos". Entre uma coisa e outra, a ficção, o romance, unindo os pontos, fazendo a mediação entre a inarticulação da vida arcaica e o absoluto da morte, da suspensão do tempo.
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